As fraturas do processo democrático têm as digitais das Forças Armadas


Em país cujo presidente, militar, governando com militares, é notório desafeto da democracia, exalta ditadores e ditaduras e entroniza no pódio de herói nacional um torturador; quando um filho desse presidente, com mandato parlamentar, anuncia que bastam um cabo, dois soldados e um jipe para fechar o Congresso e o STF, e um outro rebento, conselheiro in pectore do presidente, declara que na democracia as reformas não se fazem na velocidade de seu desejo, devem ser bem recebidas as declarações do general Mourão, vice-presidente da República segundo as quais não haveria, no Brasil de hoje, qualquer ameaça de golpe militar. Diz-nos: “Vocês precisam entender que, em determinados momentos da História, isso funcionou [intervenções militares]. Hoje, não funciona mais. O Brasil é muito complexo, uma sociedade complexa. Não é assim, ‘pô’, manda ligar o motor, fecha o Congresso, fecha isso, fecha aquilo, e muda tudo” (Correio Braziliense, 15/09/2019).

Como para nos tranquilizar, o general afirma que “as Forças Armadas brasileiras sempre foram uma instituição democrática. Em todos os momentos da vida nacional se apresentaram para preservar a lei, a ordem, e garantir que a democracia terminasse por vicejar”.

Neste ponto a conversa muda, porque, lamentavelmente, não é esta a certidão da História.

Os temores da sociedade brasileira sobre a continuidade democrática são justos, pois a República está plena de episódios de ruptura da via constitucional. E não são menores nem menos frequentes os momentos de plenitude autoritária, mesmo sob a ordem legal, compreendendo restrições de direitos civis e individuais, a censura, a discriminação e a repressão às minorias. Presentemente governantes estimulam a perseguição de adversários políticos transformados em inimigos, pregam o uso de armas de fogo e fuzilamentos sumários, combatem a liberdade de imprensa e aplicam a censura a livros.

As fraturas da ordem legal fazem parte desta cultura autoritária.

O próprio general, na entrevista citada, reconhece o viço das intervenções castrenses ostensivas, e o certificado da Historia republicana, lembramos, está repleto de episódios que assinalam, pois não são poucos, o desapreço da caserna pela ‘lei e pela ordem’ intervindo sempre para fraturar o processo democrático e juncar de crises a vida política.

O papel buscado pelas Forças Armadas é o de um especioso “Poder tutelar”, instando-se acima das leis e das instituições, como verdadeiro “salvador da Pátria”, com juízo próprio, doutrina própria, projeto próprio que não recolhe da sociedade mas que à sociedade empresta. Seus valores não são os da comunidade brasileira, pois que intentam fazer nacionais (como de todo o povo) seus próprios valores e seus conceitos, como os conceitos de legalidade e de democracia, inclusive os conceitos muito proprios de pátria e de um específico “patriotismo castrense”.

Finalmente, nossas Forças não são uma projeção da ordem democrática, mas pretendem ser a base de sustentação dessa ordem. Os militares falam de um “patriotismo” e de um “amor à pátria”, uma espécie de “nacionalismo corporativo”, próprio deles, ao qual não poderia aspirar o brasileiro comum.

Por força desse viés, qualquer leitura de nossa História, a partir da Guerra do Paraguai, mas principalmente após a Proclamação da República, revelará o permanente intervencionismo das Forças Armadas na vida política nacional, quebrando a ordem democrática, rasgando constituições, infringindo a legalidade, transformando-se, em não poucas hipóteses, em fator de instabilidade política.

O general Góes Monteiro, o mais longevo de nossos líderes militares, sua preeminência vai, pelo menos, de 1930 a 1945, costumava dizer (vide O General Góes depõe) que “não há política no Exército, mas política do Exército”. Na realidade, o Exército interfere na política de todo o período republicano e é decisivo a partir de 1930, ocupando os principais postos do novo regime; custodia o governo provisório e o regime constitucional que logo quebraria em bandas. O golpe de 1937, vestibular da ditadura do Estado Novo, é engendrado, executado e sustentado pelas Forças Armadas, e para sua efetividade foi decisiva a elaboração, no Estado Maior do Exército, chefiado por Góes Monteiro, de um falso plano subversivo (contra o qual alegadamente se operaria o golpe), conhecido como “Plano Cohen”. As mesmas Forças Armadas que haviam feito de Getúlio presidente constitucional de 1934 e ditador em 1937 levam a cabo sua deposição em 1945.

Os “pronunciamos militares” (nesse então ativíssimo o Clube Militar) são assíduos quando o ex-ditador se faz presidente constitucional em 1950, eleito por esmagadora maioria eleitoral, suplantando seu rival, o brigadeiro Eduardo Gomes, herói do Levante do Forte de Copacabana. As Forças Armadas são agente decisivo no golpe que levou à deposição e suicídio de Vargas em 1954; são elas que tentam impedir a posse de Juscelino Kubitscheck e João Goulart em 1955, promovem as arruaças de Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959) e tentam impedir a posse de João Goulart em 1961. O coroamento de tantas intervenções, de tantas quebras da legalidade, de tantas fraturas na ordem democrática seria o golpe de abril de 1964, com seus desdobramentos conhecidos – dos quais o capitão Bolsonaro é um golfejo tardio.

Mas as ameaças à democracia não se cingem aos golpes de Estado e às intervenções militares, pois elas se podem dar mesmo na vigência da ordem jurídica democrática quando, por exemplo, um comandante do exército adverte o STF de como deve ou não deve votar na interpretação da Constituição. E é atendido.

Diz-nos a sabedoria popular que “gato escaldado tem medo de água fria”. Portanto, são mais do que justas as apreensões quanto à continuidade do processo democrático, como já chegou a ecoar no STF, de que é testemunha recente intervenção do decano, ministro Celso de Melo.

Com as ameaças à democracia – sempre à mercê de intempéries – a tolerância é um erro, a omissão é um crime.

Essas apreensões são ainda mais justificadas quando temos presente a anomia do quadro político-social brasileiro caracterizado pela ausência de grandes lideranças na política, no Congresso, na vida civil, na ordem empresarial e mesmo entre as Forças Armadas, onde só se destacam expressões burocráticas. Soma-se a tal vazio e ausência de debate, a desmobilização dos movimentos social e sindical, e a crise econômica que caminha para a crise social que chamará para si a repressão, o espaço no qual se alimentam as aventuras e os aventureiros.

A questão democrática não pode ser considerada como secundária em país de autoritarismo larvar, que adota como princípio a desigualdade social, cuja formação se fez de forma bárbara na base do escravismo e do etnocídio de índios, e que ainda hoje vive dividido entre a Casa Grande e a Senzala, esta cada vez mais extensa, embora cada vez mais o povo, o povo massa, seja sujeito ausente do processo histórico, manejado pelas classes dominantes e condicionado aos seus interesses – aos quais não têm deixado de servir nossas Forças Armadas animadas pela adesão alienada a um ocidentalismo que na verdade limita nossas ações, coarcta nossa liberdade e nosso projeto de nação e nos submete à geopolítica dos EUA, agora como nos idos da ditadura.

Esse ocidentalismo, agora como antes, nos tem levando à desconstrução nacional, à renúncia à soberania e ao desenvolvimento autônomo, ao ponto de incidir diretamente nas condições de defesa dos interesses nacionais e da própria defesa armada. Porque esse ocidentalismo (suposta defesa da “civilização ocidental e cristã’) é, na verdade, uma opção pela hegemonia dos EUA e à sua política de guerra permanente, os militares chegaram a eleger seus nacionais como inimigos, pois inimigos a combater, no regime instaurado em 1964, eram os reformistas, os comunistas e todos aqueles que de uma forma ou de outra, por qualquer meio, intentavam promover modificações ou avanços no statu quo político-social. Por isso, somos, ainda, em pleno século XXI, um país em busca de uma Nação, em busca de destino, e, assim ainda sem rumo, à mercê de idas e vindas, avanços e retrocessos, à mercê de aventuras e aventureiros de que o bolsonarismo, empunhando um patriotismo tosco. É a tragédia presente.

Como observa o professor Manuel Domingos Neto (“Sobre o patriotismo castrense”) o “Brasil perde a condição de respeitável país emergente para assumir a triste situação de nação subalterna e desatinada”.

Roberto Amaral


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Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia