A GRANDE GUERRA

(LEANDRO DEMORI) --------- O perigo mortal que sopra as caravelas. jul 05, 2025 ------------------ Pelos relatos históricos de que se tem notícia, na madrugada fria de 29 de novembro de 1807 Lisboa parecia engolida por uma névoa de pesadelo. Barcos imensos atracados no Tejo balançavam em sua águas escuras, carregados com móveis, pratarias, documentos, damas da corte enroladas em xales e padres arrastando crucifixos. Entre o bafo salgado que salteava do rio e o cheiro de medo que exalava dos ocupantes, o monarca D. João VI embarcava com a família real rumo ao Brasil. Fugia de Napoleão, o militar francês que avançava pela Europa derrubando reis. O povo assistiu boquiaberto à debandada. Enquanto os cavalos de quem via a partida relinchavam pelas ruas de Lisboa, os marinheiros gritavam ordens entre as ondas e os caixotes se empilhavam nas naus levando toda a família real e o coração da Corte para o Brasil. Muitos portugueses olhavam para aquela fuga como quem assiste a uma traição: a coroa abandonava sua gente para salvar a própria pele. O Moniteur Universel, jornal oficial francês que fazia propaganda napoleônica, publicou: Dom João “fugira para o outro lado do oceano como um covarde, deixando sua coroa nas mãos de estrangeiros”. Nas Memórias do Marquês de Alorna lê-se: “em vez de enfrentar o invasor com a dignidade que se espera de um soberano, o regente tomou o caminho do mar, largando seu povo à própria sorte, sem governo nem defesa”. O historiador Alexandre Herculano escreveu em sua História de Portugal: a corte “teve por única virtude a pusilanimidade; em vez de morrer ao lado de seu povo, preferiu salvar-se a si mesma”. Lord Strangford, diplomata britânico que acompanhou de perto a transferência da corte portuguesa para o Brasil, relatou em uma carta: “o embarque de Dom João fora apressado, confuso e, sob certos olhos, humilhante”. Os navios partiram com mais de 15 mil pessoas. A cidade ficou para trás, entregue ao invasor. Dois séculos depois, numa tarde abafada em Brasília, o deputado Hugo Motta tomou o mesmo impulso da monarquia portuguesa: fugir, na contramão. Não de canhões nem de sabres franceses, mas de perigosos memes da internet. Especificamente dos memes de IA que diziam que ele é o grande defensor e fiador dos bilionários no Brasil. Mentira? Com a desenvoltura de quem já está acostumado a trocar de cenário para salvar a própria biografia, Hugo arrumou as malas e foi direto para o Gilmarpalooza, o encontro tropical além-mar que reúne elite política-jurídico-midiática-empresarial brasileira onde juízes, empresários, ministros e banqueiros se reúnem para rir, brindar e definir os rumos do país (o Brasil, no caso). Ali, entre taças de espumante e camarões rosas, Hugo tentou debelar a fumaça que os memes levantaram. Pouco adiantou: sua imagem pública entrou em “colapso simbólico”. Como nem toda a imprensa em 1807 fazia troça da Corte portuguesa, nem toda a imprensa em 2025 desnuda a covardia de Motta. O Jornal Nacional saiu em sua defesa, se jogou em cima da granada para tentar salvar um dos fiadores da eleição de 2026, “sem Bolsonaro e sem Lula”, como interessa ao baronato. E com Tarcísio. Na quinta-feira, o JN levou ao ar uma reportagem que mais parecia um cordel escrito às pressas por um estagiário treinado nas fileiras do Brasil Paralelo. O telejornal chamou os memes de IA de “ataques”. Enfatizou que causam “polarização” e levantam “preocupação de especialistas”, sem dizer quais e por que. E chamou o líder da oposição, o fiel bolsonarista Zucco, pra dar uma declaração firme pregando que o país precisa de “paz”. Sim. Bolsonarista falando em polarização, reclamando da internet (ué?) e pedindo paz. Como se um bando de piadas feitas por brasileiros anônimos fosse uma invasão napoleônica, um crime contra a humanidade ou um míssil teleguiado contra o Parlamento. Falas graves contra os memes vindas de quem usa a internet para mentir e barbarizar. Palavras de “preocupação” do “nós contra eles” proferidas por quem falava em fuzilar milhares de pessoas e que, até hoje, pede anistia a golpistas. Uma piada oceânica. Sob a voz grave do JN, os memes foram apresentados como monstros digitais, e Hugo Motta, como um herói injustiçado. Dava quase para ouvir, por trás da edição da reportagem, o choro de um rei embarcando em um navio, fugindo da própria história. Enquanto eu assistia atônito à reportagem, só pensava em outro meme, quase como que uma palavra de incentivo aos anônimos criadores da internet: “nossa, que horrível, manda mais”. -------------- por Leandro Demori --------------- © 2025 Leandro Demori