Por Marcia Tiburi - Professora de Filosofia, escritora, artista visual
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"Todo o governo Bolsonaro se dá no clima da farsa. É o próprio bobo da corte que usurpou o lugar do Rei preso com a ajuda do juiz ladrão", escreve Marcia Tiburi
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O ano eleitoral está aí e a força da farsa que conhecemos em 2018 será renovada.
Rememoremos: no 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx apontou para uma relação fundamental entre estética e política ao afirmar que a história se repete como tragédia e como farsa.
A farsa é uma imitação da tragédia que intensifica seu efeito utilizando o grotesco como estilo. Lembremos que a farsa do Ubu Rei de Alfred Jarry, que em tudo lembra Bolsonaro em seu desejo de comer e matar, já era uma imitação debochada da tragédia de Macbeth de Shakespeare.
Tragédia e farsa são duas formas teatrais, mas são também parâmetros estéticos da política. Se a tragédia pauta o mundo pelo heroísmo, pelo belo, pelo sublime e pelos altos valores, a farsa pauta-o pelo contrário disso tudo. Nesse contexto, a oposição entre Lula e Bolsonaro é evidente e dispensa explicações.
Todo o governo de Bolsonaro se dá no clima da farsa, cada um dos seus ministros é um farsante que destrói aquilo que deveria construir e ele é o próprio bobo da corte que usurpou o lugar do Rei preso por mais de 500 dias com a ajuda de personagem secundário, o juiz ladrão, que, com a ajuda da mão nem tão invisível do Império, resolveu ele mesmo ocupar o papel principal.
Não é demais repetir que o governo bolsonarista é uma farsa que imita a tragédia da ditadura militar, em si mesma farsesca. Moro é continuação da farsa, na condição de ex-ministro de Bolsonaro, o “Bolsonaro que sabe usar talheres” ou pelo menos não finge comer no cocho com direito a set de filmagem em volta, como ficou exposto nas redes há poucos dias. A produção cinematográfica de Bolsonaro está ainda na frente da produção jornalística da rede Globo que sabe muito bem como construir personagens e tramas. Contudo, as novelas do jornalismo não são tão bem feitas como as novelas propriamente ditas e o segredo do roteiro no qual o corrupto que grita contra a corrupção é, ele mesmo, um corrupto, está claro demais para conquistar espectadores para um próximo capítulo.
Antes se seguir com a análise dessa narrativa que está sendo construída diante dos olhos costurados com as próprias tripas dos espectadores, é preciso ter em mente que, apesar da desvantagem essencial de uma imitação, o efeito de poder continua vivo nela. A cultura do escamoteamento e da camuflagem serve para os procedimentos estéticos, como implantes capilares e dentes falsos atualmente em moda, para bolsas e roupas de marca fabricadas na China, mas também para a política. Porém, nesse jogo pérfido, quem tentar parecer melhor do que é, tende a se dar mal (isso vale para todo o espectro político).
Além disso, lembremos que os personagens infames, ridículos ou grotescos produzem efeitos de poder justamente por meio da desqualificação de seus discursos. No discurso desqualificado Moro é bom, mas ele ainda precisará intensificar a sua performance se quiser assumir o lugar de Bolsonaro. Quando se escolhe um ator para um trabalho, ele é escolhido justamente por competências prévias, mas a recepção das massas parece estar sendo mal calculada nesse caso. Os fascistas sempre subestimam a população e precisam emburrecê-la para poder contar com ela. A enganação precisa ser bem feita, porque as massas são maleáveis e podem mudar de direção se perceberem que outros podem ter razão.
Assim, para ser um bom candidato, Moro precisa de um pouco mais de apelação carismática, algo que e ele naturalmente não tem e que Bolsonaro esbanja. Para este último era fácil, bastava capitalizar o mau gosto, que é um capital maior do que nunca na cultura depois da guerra contra a democracia. Moro resiste a fazer esse papel. Em que pese a tentativa de começar a tentar falar grosso, evitando a sonoridade vocal que lhe rendeu o apelido de Marreco de Maringá, ele não tem a virilidade necessária exigida no momento fascista em que o machismo histérico tem sido bem importante (falaremos sobre isso em um próximo artigo).
Todos os personagens da direita-extrema-direita que querem aceder ao poder têm buscado se inscrever no padrão estético do grotesco ou do ridículo desde 2016. Nesse sentido, para Moro, melhor seria assumir o “marreco” do que tentar disfarçar. Ele poderia conquistar o voto de indignação ou o voto por deboche que levou figuras como Tiririca ao poder. Janaína Paschoal, Kim Kataguiri, Alexandre Frota e tantos outros chegaram ao poder em 2018 apenas porque se inseriram nessa mesma lógica estética.
Nesse contexto, Bolsonaro foi um sucesso a partir do Golpe de 2016 ao produzir um tipo de farsa na segunda potência. Ao assumir a sinceridade da farsa ele conseguiu re-enganar a todos e, senão livrar-se da marca da mentira, pelo menos redimensiona-la a seu favor. Para o seu eleitorado a sua paradoxal “sinceridade” vale mais do que tudo. Ele pode praticar todo tipo de crime e ilicitude e ainda será defendido pelas pessoas identificadas com o ídolo. A mentira diária de Bolsonaro é parte da retórica do desnorteio que ele pratica tão bem e que funciona num looping renovando diariamente o estupor dos críticos, assim como o êxtase de seus adoradores.
Bolsonaro não finge quando é falso. Eis o sentido da farsa autêntica. Por isso, pode aparecer encenando como um porco sem perder o seu eleitorado. Assim, enquanto Moro permanecer tentando parecer o que não é, não haverá futuro para ele. É preciso que ele assuma a sua verdade como um bom cínico deve fazer se quiser tornar o cinismo uma tecnologia de poder efetivo. Moro precisa fazer mais circo agora que não tem mais seu Lula preso e nem o espetáculo da Lava-Jato para se capitalizar como um punitivista como gosta a sociedade conservadora. Todas as vezes em que ele fez isso, ele cresceu na opinião pública. Ao resistir de se entregar ao Moro ele acaba com o seu maior potencial. Não basta ser ridículo, é preciso entregar-se ao papel.
A farsa é a forma da política na era da razão publicitária, uma estrutura estética, narrativa, teatral, performática. Ela é o único modo pelo qual muitos fazem política e chegam ao poder. E como há um viés de ficção na farsa política, e não de simples mentira, fica muito difícil para a população perceber que se trata de um jogo, de uma cena. A mentira se explicita, a ficção se escamoteia e tudo se torna tecnologia política. Uma tecnologia política é um dispositivo composto de estratégias e táticas, discursos e práticas, entidades e instituições, todas unidas pelo mesmo princípio.
Se a farsa é uma tecnologia política, isso quer dizer que o jogo é a mentira, a enganação, a desinformação em geral, daí as fábricas de fake news, as empresas que se alimentam de ódio, um afeto que ajuda a instaurar o clima de guerra necessário ao processo de conservação do poder. O gabinete do ódio é o maior negócio da nação e não há previsão de sua derrocada, ao contrário. O que deu certo em 2018 continuará em ação de modo turbinado em 2022.
Por isso, nesse momento, todos devem se unir contra a grande farsa fascista, mas sem consciência disso e lançados em jogos de poder, muitas vezes infantis, não será fácil superar a extrema-direita e suas habilidades inescrupulosas que reforçam a cada dia a força da farsa.