Entre um prédio da Marinha do Brasil e o Mercado Municipal de Itajaí-SC, no coração cultural da cidade, quem manda são os manifestantes bolsonaristas. Para as autoridades do município e do estado, está tudo bem (crédito: reprodução de grupo de WhatsApp bolsonarista) -----
Publicado por Vinicius Segalla - DCM ----
Em Itajaí, no litoral norte de Santa Catarina, na foz do rio de mesmo nome, a 90 quilômetros de Florianópolis, é difícil encontrar alguém que diga o que está achando do movimento bolsonarista na cidade. Desde que o presidente Jair Bolsonaro (PL) foi derrotado nas eleições de outubro deste ano, a população convive com um acampamento de eleitores inconformados com o resultado das urnas.
Assim que o ex-capitão perdeu, começou o acampamento, de início com mais de 5.000 pessoas. Instalaram-se em frente ao prédio da Delegacia da Capitania dos Portos em Itajaí, da Marinha do Brasil. Bem no coração gastronômico e cultural da cidade de 223 mil habitantes (IBGE, 2020), em frente ao Mercado Municipal, pertinho do Mercado de Peixe, dos restaurantes, dos institutos culturais.
Mesmo ali, naquela região, é difícil encontrar alguém que diga o que está achando do movimento bolsonarista na cidade. Ou, pelo menos, é difícil encontrar alguém disposto a dizer o que está achando para um repórter, que pretende publicar aquilo que for dito, com nome e sobrenome de quem está dizendo. E quem pode culpá-los?
De resto, para entender o que está acontecendo em Itajaí desde que Bolsonaro perdeu a eleição não é preciso saber o que acha quem quer que seja. Bastam os fatos.
No dia 11 de novembro, uma sexta-feira, o fotógrafo e produtor audiovisual Lenon Cesar foi trabalhar. A cidade promovia a segunda edição do Mercado Blues Festival. De 10 a 12 de novembro, o prédio do Mercado Velho, em frente à instalação da Marinha, recebeu cinco atrações nacionais e internacionais, entre elas Freddie Dixon, filho de Willie Dixon, um dos maiores nomes do Blues de todos os tempos.
Lenon Cesar foi fotografar o evento, promovido pela Prefeitura de Itajaí. Não era a primeira vez que fotografava aqueles arredores. Dias antes passara fotografando os bolsonaristas, a ocupação ilegal de vagas públicas de estacionamento, os motorhomes e aquele monte de comida chegando, as rezas, as incontáveis homenagens à bandeira do Brasil, aquelas falas golpistas do alto do carro de som, a instalação de banheiros químicos sem qualquer alvará. Os bolsonaristas não gostaram do fotógrafo fotografando aquilo tudo, mas mesmo assim ele colocou tudo em seu Instagram.
Então, quando Lenon voltou ao local naquela sexta, para registrar a apresentação de Freddie Dixon e tudo mais que aconteceria no evento cultural, reconheceram o fotógrafo. Ele apanhou de uns quatro ou cinco, soco para tudo que é lado. As agressões ocorreram bem quando passava uma viatura da polícia. Quem falou com o DCM sem querer dar o nome contou que foi um custo para que os policiais ressolvessem intervir.
A imprensa local registrou os fatos, as redes sociais na cidade bombaram o assunto, todo mundo em Itajaí ficou sabendo. E ficou por isso mesmo, até agora ninguém preso, indiciado, suspeito divulgado, nada, a não ser o fato de que Lenon Cesar passou a receber ameaças de morte e resolveu apagar tudo que tinha registrado em seu Instagram sobre aquele acampamento.
Já entre os dias 16 e 19 de novembro, o município de Itajaí promoveu a 1ª Mostra Haiti de Cultura, que teve lugar nas instalações do CEU – Centro de Artes e Esportes Unificados. O projeto foi idealizado pela produtora cultural Andréa Müller, do Espaço Cultural Beija-Flor Cobra Criada, voltado para a comunidade haitiana residente nos bairros São Vicente e Cidade Nova.
A iniciativa apresentou a arte e a cultura haitianas, “com o propósito de incluir e de inspirar novos acolhimentos culturais e sociais“, conforme anunciou o próprio município. Para alguns, no entanto, a inspiração que veio foi outra.
A mostra artistíca ocorreu com segurança reforçada por duas guarnições da Guarda Municipal e enfrentou cancelamento de visitas de escolas e clima de tensão, depois que ameaças neonazistas de realizar uma chacina no evento foram enviadas a jornalistas e advogados da cidade. Na semana do evento, o CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), que realiza atendimento de – inclusive – famílias haitianas, temendo um atentado, não abriu suas portas.
Nas mensagens enviadas, há uma série de ameaças e ofensas aos haitianos (negros nojentos), ao presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (lixo racial), e a todas as pessoas que eventualmente fossem visitar a mostra cultural: “Vamos invadir o Centro de Artes e Esportes Unificados do bairro São Vicente onde vai ter essa Mostra de merda e matar todo mundo que a gente pudermos (sic) alcançar”. De acordo com os autores da mensagem, este ataque seria o “primeiro ato para a purificação racial do Reich Catarinense“.
A imprensa local e nacional registraram os fatos, a Polícia Civil de Santa Catarina disse que iria investigar, mas, até agora, ninguém preso, indiciado, suspeito divulgado, nada. O fotógrafo Lenon Cesar, que já estava sendo ameaçado de morte quando a exposição ocorreu, decidiu arriscar: já que não está com a vida ganha, aceitou o trabalho que lhe foi oferecido, de fotografar o evento. Foi – com medo, mas foi. Suas fotos saíram em mais de dez jornais do país, inclusive na Folha de S.Paulo.
Já o motorista de frete Rafael dos Santos Cabral da Silva não teve a mesma sorte. No dia seguinte ao fim da 1ª Mostra Haiti de Cultura, 20 de novembro, um domingo, ele saiu de casa cedinho para fazer uma entrega em Itapema, município vizinho a Itajaí.
No caminho, passou por um bloqueio montado por eleitores de Jair Bolsonaro inconformados com a derrota eleitoral, na rodovia BR-101. Aproveitou para fazer um vídeo para um grupo de amigos, fazendo piada com os bolsonaristas, dizendo que aquele acampamento servia para que ele pudesse tomar água e café. “Para isso que eles servem, para eu tomar água e café”, fez troça o motorista. Enviou o vídeo aos seus grupos de Zap e seguiu o dia de trabalho.
Horas mais tarde, no mesmo dia, recebeu um telefonema, um pedido de frete, para transportar um sofá que deveria ser retirado em um prédio ali pertinho do bloqueio bolsonarista na BR-101. Ele foi – com medo, mas foi. Chegando lá, era uma emboscada dos manifestantes.
Tomaram a chave de seu carro, seu telefone celular, seu boné do MST, meteram-no em um carro com quatro bolsonaristas em volta, um quinto foi dirigindo sua perua, foram até o bloqueio bolsonarista, ele teve que pisar no próprio boné, gravar vídeo com pedido de desculpas, ficar balançando uma bandeira do Brasil por meia hora, ficar sem saber se ia viver ou morrer.
Tudo devidamente registrado pela imprensa. O caso foi tão esdrúxulo que, dessa vez, o Ministério Público e até a Polícia Civil de Santa Catarina solicitaram a prisão dos envolvidos, munidos de vídeos, testemunhas e provas periciais sobre a autoria dos crimes investigados em inquérito policial, de tortura e sequestro.
Os bolsonaristas se tornaram réus e agora respondem à Justiça pelos crimes de que são “suspeitos”. Mas Rafael não pode pisar em Itajaí, muito menos trabalhar lá, Assim que devolveram ao motorista seu telefone celular, depois das quatro horas que passou sob o cárcere dos manifestantes, começou a enxurrada de ameaças e pedidos falsos por serviços de fretes.
Como ele poderia a partir dali saber qual serviço poderia aceitar? Rafael ficou com medo até de ir a polícia – e quem pode culpá-lo? Foi-se embora da cidade no mesmo dia, para fora do estado de Santa Catarina, onde contou com a solidariedade de amigos, da família e de uma “vaquinha virtual” para sobreviver.
Talvez Rafael enfrentasse o medo e voltasse à sua cidade se os autores reconhecidos do cárcere e da tortura fossem presos. Mas o duplo pedido de prisão foi negado pela Justiça, mais especificamente pelo juiz Marcelo Trevisan Tambosi, da Vara Criminal de Itapema. O magistrado alegou que os (agora) réus possuem residência fixa, portanto não irão fugir da Justiça, e que Rafael nem se encontra mais na cidade e está em município não divulgado, portanto não pode ter sua integridade física de fato ameaçada.
Parece piada ruim, mas não é. Foi tudo devidamente registrado pela imprensa. Tudo, inclusive o fato de que o juiz é também empresário, dono de um clube de tiro com uma das maiores coleções de fuzis do Brasil, e também de uma importadora de armas e munições, os dois negócios abertos durante o governo Bolsonaro. Ele decidiu deixar os bolsonaristas soltos e depois largou o caso, que agora será julgado na capital Florianópolis. Assim que é.
Desde que Jair Bolsonaro perdeu a eleição, o DCM tem mantido contato constante com moradores, comerciantes, artistas e autoridades de Itajaí e do entorno do Mercado Municipal. O relato que segue abaixo é a condensação dos principais fatos narrados por aqueles que contaram o que viram e o que acham do acampamento bolsonarista no coração da cidade, mas que, temendo ter o mesmo destino que Leandro, Rafael e outros na cidade, pediram para não ter seus nomes revelados.
Este acampamento está fazendo o movimento dos restaurantes do Mercado e do entorno diminuir drasticamente. Essa época do ano é a de maior faturamento, está todo mundo amargando o prejuízo.
A diminuição dos clientes é imensa, as pessoas não frequentam mais o Mercado Público, que é o centro cultural da cidade. Eles estão acampados ao lado do Mercado, com um caminhão de som enorme, onde ficam fazendo discursos e tocando o hino nacional das 8h da manhã às 23:30. Todos os dias.
Levam pastores para fazer um sermão religioso, gritam palavras de ordem,fazem oração, é insuportável. Ninguém vai querer frequentar um local desses.
Já houve uma série de apresentações artísticas canceladas nos bares e restaurantes do mercado, teve estabelecimento que reclamou do transtorno e depois passou dois fechados, com medo de represálias por causas das ameaças que recebeu. Alguns funcionários disseram que estavam com medo de vir trabahar.
Eles criaram uma lista e vincularam em vários grupos do Whatsapp apontando os estabelecimentos que, segundo eles, são apoiadores do PT. E todos os restaurantes anexos ao Mercado Público foram citados. Com isso começaram as ameaças, com pessoas da manifestação abodando clientes, dizendo que não deveriam comer ali porque era um restaurante petista.
Pelo menos cinco funcionários já relataram ameças de morte, além de falas homofóbicas e racistas. Um funcinário foi levado ao pronto-socorro, com crise de ansiedade, após um cerco bolsonarista ao estabelecimento em que trabalhava.
Eles ocupam mesas externas dos restaurantes sem consumir absolutamente nada, no que parece uma tentativa de sabotagem e boicote aos estabelecimentos.
Estão fornecendo comida diariamente para os manifestantes, além de água e café. Eles têm duas cozinhas montadas em tendas, onde produzem essas refeições e distribuem. Os integrantes da manifestação comem nas mesas do restaurante, impedindo os clientes de consumirem, enquanto fazem discursos absurdos, apoiando a ditadura militar e a família patriarcal.
Estão ocupando vagas destinadas aos turistas e frequentadores do Mercado, além de obstruir totalmente a rua lateral com carro de som e cadeiras.
É um ambiente insustentável, o som deles é extremamente alto, é desagradável ficar em um ambiente assim, com cozinha a céu aberto, barracas de lona, barracas com colchões, trabalhar com medo, com ameaças diárias.
Tem uma banca de jornal, revistas e serviços que fica do lado do Mercado. Um dia, eles puseram na cabeça que o dono era petista, e obrigaram o senhor a colocar uma bandeira do Brasil pendurada na prateleira, disseram que se ele tirasse, iria se arrepender.
Moro do lado do acampamento e não consigo ficar em casa, o medo, a sensação de impotência, a polícia e nenhuma autoridade vem ao nosso socorro.
Estou à base de calmante para conseguir trabalhar e aguentar as ofensas diárias sem retrucar. É um ambiente insustentável.
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“É preciso dar um basta”----
Eis aí a situação que vive o município catarinense de Itajaí. A distopia inspirou o Partido dos Trabalhadores da cidade. Baseado na “Lei de Acesso à Informação” (Lei Federal 12.527/2011 bem como Instrução Normativa 060/CGM/2022), o PT protocolou na tarde da última sexta-feira (17) um pedido de informações relativo à situação do acampamento.
O presidente do diretório municipal do PT de Itajaí, Gerd Klotz, afirma: “É preciso dar um basta nesta ocupação de bens públicos que já se estende há mais de 40 dias, com extremistas de direita pregando golpe militar, intervenção ilegal, desrespeito à Constituição Federal e questionamento sobre o processo eleitoral, já de pronto reconhecido pela Justiça e por entidades de países estrangeiros”.
“Estamos questionando o governo municipal sobre as autorizações para a ocupação de vias públicas, calçamentos, estacionamentos (inclusive para idosos), a origem do abastecimento de água e energia elétrica e sobre (a falta de) alvarás sanitários para o funcionamento da cozinha comunitária que os extremistas montaram no local”, destaca o dirigente.
No pedido de informações, o PT cobra que a autoridade municipal informe e disponibilize os documentos e atos administrativos produzidos relativos à autorização de uso do espaço público, a reintegração de posse dos bens públicos e a desobstrução da via pública, a fiscalização da vigilância sanitária, na cozinha e banheiros químicos, a permissão para uso de energia elétrica e mais uma série de procedimentos e autorizações que, já se sabe muito bem mesmo antes de o município responder, certamente não existem. Só o que há é ilegalidade e conivência.
O advogado que protocola a petição do PT junto ao município é Marcelo Saccardo Branco, não por acaso o mesmo que representa a vítima de sequestro e tortura Rafael dos Santos Cabral da Silva. Ou se pode achar que há muitos advogados em Itajaí dispostos a enfrentar este cerco extremista que faz a população e o município de Itajaí de reféns?