O QUE FAZER NO QUARTEL?

- Por Manuel Domingos Neto - - - Democratas sinceros dizem: os militares devem voltar ao quartel. Se mal pergunto: fazer o quê? - - - Formar novos Bolsonaros, Helenos, Villas Boas, Pazuellos, Etchegoyens ou coisa pior? Desenvolver “sinergias” com o Judiciário e outros braços do Estado, como aponta Piero Leirner? Cooptar aliados civis distribuindo medalhas a mão cheia, como alerta Ana Penido? Melar a disputa eleitoral com tuitadas, versões contemporâneas de sempiternas ameaças à ordem democrática, como frisa Eliézer Rizzo? Pintar meio fio, como sugeriu, num desabafo, Cristina Serra? Atuar como empreiteira obras de engenharia, como mencionou Lula? Manter operante a “família militar”, a maior e mais tresloucada organização política reacionária do país? Inventar versões da história do Brasil arrogando-se a condição de pais da pátria e estigmatizando os que lutaram por mudanças sociais? Arapongar os que sonham com terra, trabalho e moradia? Exercitar-se para operações de garantia da lei que beneficia os de cima e da ordem que massacra os de baixo? Esbagaçar dinheiro público comprando armas e equipamentos que não defendem o Brasil, mas reforçam o poderio de potências imperiais, como tenho insistido? Quem pretende um país soberano e uma sociedade que supere a cruel herança colonial precisa saber o que fazer com as fileiras. Até agora, generais disseram o que julgam ser bom e ruim para o país. Passa da hora de os brasileiros definirmos como devem ser e o que devem fazer as fileiras que custeamos. A Defesa do Brasil é assunto eminentemente político. Não cabe pensar que os militares sejam incompetentes para governar. São tão competentes que impuseram regimes e governaram ou condicionaram governantes desde o final da monarquia! Sua competência está demonstrada de forma eloquente: o Brasil preservou estruturas arcaicas e manteve a dependência do estrangeiro poderoso. Dizer que são incompetentes, como fizeram José Luís Fiori e William Nozaki, é mascarar a evidência: os propósitos das fileiras contradizem os anseios sociais. Se levarmos a sério a soberania popular, respondamos a questão: o que fazer com as fileiras? Sem responde-la, demonstraremos medo de sermos felizes. É improducente e desarrazoado falar em "projeto de nação", "projeto de país" ou "projeto de sociedade" sem saber o que fazer das fileiras. É vão pensar em política externa altiva e ativa sem instrumentos de força. O mesmo, quanto ao desenvolvimento econômico e a mudança social benfazeja. As fileiras de que dispomos foram estruturadas para um país atrasado sob todos os aspectos. Digo, todos, inclusive o atraso científico e tecnológico. Olhando de perto, a legenda nacionalista e desenvolvimentista de outrora decorreu de situações forçadas, entre as quais o reclamo social impulsionado pelos comunistas. Voltemos a ler João Quartim de Moraes. Sem a pressão dos comunas, as fileiras poderiam ter apoiado Hitler. Os comunas teceram loas aos generais que contribuíram para a autonomia energética, a ciência e a modernização da infraestrutura. Enfim, contribuíram para firmar boa imagem das fileiras. Os fardados devem muito aos comunistas. Só a expedita ordem de quem lhes vende armas e equipamento explica a fúria com que bateram e sangraram patriotas e reformistas sociais. No mundo inteiro, comunistas mostraram que sabem morrer pela pátria. Quem mata comunista trai a pátria. Precisamos mudar o quartel estruturado para manter leis injustas e ordens iníquas. Para tal, cabe estudá-los. De todos instrumentos de Estado, as fileiras são as mais complexas e perigosas. Apegam-se à tradição como a lagarta ao milharal do lavrador indefeso. Falando em tradição, adorei quando o presidente eleito do Chile lembrou Gustav Mahler, um judeu da Boêmia que, sendo romântico, abriu caminho para a sinfonia moderna. Suas composições eram longas e complexas, sugeridas pelas ruas. Mahler disse que a tradição não consistia no culto às cinzas, mas na preservação do fogo. Morreu em 1911, sentindo os fragores da hecatombe.