Rússia: o bloqueio das reservas pode sair pela culatra, por César Locatelli

A imprensa tem reportado corrida ao bancos e filas nos caixas eletrônicos. Alguns artigos na imprensa relembram a hiperinflação alemã do início do século XX ------- Jornal GGN ------- por César Locatelli ----- A Rússia está impedida de ter acesso a grande parte do 630 bilhões de dólares que acumulou de reservas internacionais nos últimos anos. O bloqueio, imposto pelos Estados Unidos, pela União Europeia e outros, repete o roteiro já aplicado sobre a Venezuela e sobre o Irã. As implicações para a economia russa serão intensas. As previsões, no entanto, de seu colapso podem não se verificar. A Rússia parece estar em condições bastante melhores do que estava na crise de sua dívida dos anos 1990. Naquele período, os países foram, sucessivamente, adotando regras de maior flexibilidade para as transações com moedas estrangeiras. Alguns países o fizeram por vontade própria e muitos outros foram obrigados a fazê-lo por imposição do FMI e outras instituições como condicionantes para negociar empréstimos. Nada impede que países como a Rússia voltem a ter as restrições às operações de câmbio que antes eram comuns entre os países não desenvolvidos. O comércio com outros países era completamente centralizado pelo governo. Não se podia importar sem autorização e não se podia reter moeda estrangeira fruto de exportação. Nas crises do petróleo e nas crises de dívidas soberanas, a moeda estrangeira era direcionada exclusivamente para comprar bens essenciais à população e que possibilitassem a continuidade do funcionamento da economia. Uma das primeiras medidas tomadas pelo governo russo após o bloqueio de suas reservas internacionais, segundo a imprensa, foi determinar que os exportadores vendam 80% da moeda que receberem por suas vendas ao exterior. As autoridades tiveram como objetivo influir na oferta de moeda estrangeira e tentar manter em funcionamento o mercado de câmbio com certa liberdade. Tentaram, igualmente, influir na demanda com uma forte elevação nas taxas de juros. A taxa básica teria saído de 9,5% ao ano para 20%. A medida foi tomada após uma queda de 30% no valor do rublo. Informações da imprensa dão conta que a desvalorização do rublo, neste primeiro dia útil após as sanções, teria retornado para 20% após a subida dos juros. Há, portanto, medidas mais fortes no arsenal do governo russo para diminuir os efeitos da guerra financeira lançada pelos países desenvolvidos. Uma delas é a centralização completa da compra e venda de moedas estrangeiras: toda e qualquer transação cambial, seja por comércio seja por movimentação de capitais, passa a transitar pelo Banco Central, com taxas de compra e venda estipuladas pela autoridade monetária. Era assim nos anos anteriores à globalização e queda das barreiras aos movimentos de capitais. A imprensa tem reportado corrida ao bancos e filas nos caixas eletrônicos. Alguns artigos na imprensa relembram a hiperinflação alemã do início do século XX. Parece exagerada tal comparação, já que o Banco Central da Rússia e o governo russo têm diversos mecanismos à sua disposição para aliviar a incerteza dos depositantes, como o ilustra o exemplo norte-americano na crise imobiliária. Em 2008, a agência norte-americana de garantia, Federal Deposit Insurance Corporation, passou a garantir a dívida dos bancos e, em certos casos, fornecer um seguro de valor ilimitado aos depositantes, em caso de insolvência da instituição financeira. Só o Citigroup recebeu uma injeção de capital de 20 bilhões de dólares e proteção para perdas em ativos do grupo no valor de 306 bilhões. A garantia era conjunta da Tesouro dos Estados Unidos, do FDIC e do Federal Reserve. Se necessária, a proteção do governo russo, possivelmente, focará nos depositantes domésticos e tentará medidas com impacto crescente, podendo chegar à estatização do sistema, para debelar a crise de confiança. Diferentemente do que tem sido publicado o Banco Central a Rússia não precisa das reservas para agir domesticamente. Os depositantes das instituições financeiras russas fora da Rússia podem sofrer os impactos do bloqueio. As estimativas veiculadas pelo jornal inglês Financial Times são de que o bloqueio alcance mais da metade das reservas russas. Cerca de 130 bilhões, ou 23% do total das reservas, seriam em ouro armazenado dentro da Rússia e, assim, não sujeitos ao bloqueio. Além desse montante, cerca de 14% das reservas, ou algo em torno de 88 bilhões, estariam em yuans ou em títulos denominados em yuans sob controle da China, portanto, presumivelmente, fora do bloqueio. Além desse valor expressivo fora do alcance das sanções, suficiente para o curto prazo, ainda existe a possibilidade de comércio sem transitar pelas instituições financeiras que aderiram ao bloqueio e, ainda sem o uso de dólares ou euros. O acordo que China e Argentina fizeram recentemente prevê uma conta, no banco central chinês, em yuans para a Argentina e outra em pesos para a China no BC argentino. Compras do país sul-americano seriam pagas em pesos e as chinesas pagas em yuans. O bloqueio das reservas russas, como já tinha acontecido nos casos venezuelano e iraniano, deixou claro para o mundo que, além das inúmeras vantagens econômicas que o uso de dólares como moeda internacional confere ao seu emissor, os EUA, há ainda ganho de poder geopolítico. As buscas por mitigação do risco de ter reservas bloqueadas por decisão política devem se intensificar. -------- Cesar Locatelli – Economista e mestre em economia --------- O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN