Conhecendo nossos inimigos: Ucrânia, o campo de treino militar para a extrema-direita mundial

Foto: Jason Blazakis: “A Ucrânia é a porta das traseiras para a União Europeia no que à extrema-direita diz respeito, e a ameaça é muito grande” PIERRE CROM/GETTY IMAGES ------ A Ucrânia tornou-se para a extrema-direita o que a Síria foi para o Daesh. Militantes recebem treino, melhoram tácticas e técnicas e estabelecem redes internacionais, e depois regressam aos seus países. Milhares de estrangeiros combateram em milícias contra os separatistas pró-russos no Leste do país. ------ Ricardo Cabral Fernandes /De “O Público”, jornal português online ------ A Ucrânia é hoje um dos principais pólos de atracção para a extrema-direita internacional e quase quatro mil estrangeiros de mais 35 países já receberam treino e combateram nas fileiras de milícias na Guerra Civil Ucraniana. Uma delas, o Regimento Azov, transformou-se num alargado movimento, criou um Estado dentro do Estado ucraniano, estendeu tentáculos por toda a Europa e quer criar uma Legião Estrangeira ucraniana. “Olho para a Ucrânia como o local onde a extrema-direita pode adquirir treino, capacidades militares e partilhar ideias. É, de muitas formas, para a extrema-direita o que o Daesh conseguiu na Síria”, disse ao PÚBLICO Jason Blazakis, investigador associado no Soufan Center e director do Centro sobre Terrorismo, Extremismo e Contraterrorismo, na Califórnia, Estados Unidos. “A Ucrânia é a porta das traseiras para a União Europeia no que à extrema-direita diz respeito, e a ameaça é muito grande. Os indivíduos recebem treino nos campos de batalha ucranianos e depois regressam aos seus países de origem”. Uma situação que o relatório White Supremacy Extremism: The Transnational Rise of the Violent White Supremacist Movement, do Soufan Center e publicado em Setembro de 2019, classifica como preocupante. “Tal como os jihadistas usaram conflitos no Afeganistão, Tchetchénia, Balcãs, Iraque e Síria para melhorarem as tácticas, técnicas e procedimentos e solidificarem as suas redes internacionais, também os extremistas de direita estão a usar a Ucrânia como laboratório de campo de batalha”, lê-se no documento. O terrorista responsável pelo massacre em duas mesquitas de Christchurch, na Nova Zelândia, em Março de 2019, estava bem integrado na extrema-direita mundial e o colete balístico que envergou no atentado tinha o símbolo do sol negro, popularizado pelo Regimento Azov. No manifesto, intitulado A Grande Substituição, que escreveu para justificar o massacre, o terrorista disse ter visitado a Ucrânia. Não tardaram a surgir suspeitas de que terá estado com o Azov pouco depois de ter sido criado, em 2014, apesar de a milícia ter negado ter tido qualquer contacto com ele. Meses depois do massacre que matou 50 muçulmanos, o manifesto foi traduzido para ucraniano por militantes neonazis de uma organização com ligações ao Azov, a Wotanjugend, noticiou o site de investigação Bellingcat. Milhares de cópias foram impressas e houve milicianos, cuja filiação se desconhece, que posaram para fotografias com exemplares nas mãos. Voluntário da milícia Azov durante um acção de treino em Urzuf, arredores de Mariupol, em 2015 MARKO DJURICA/REUTERSE, no que a Portugal diz respeito, pelo menos um português combateu num dos batalhões do Corpo de Voluntários Ucranianos, da organização de extrema-direita Sector Direito. “Há dois anos [2018], descobri um cidadão português que participou em combates, por dois a três meses, nas fileiras do Corpo de Voluntários Ucranianos”, disse ao PÚBLICO o investigador que recolheu os dados do relatório, sem conseguir, no entanto, dar mais pormenores sobre a sua identidade. Porém, a grande maioria de combatentes europeus de extrema-direita juntou-se aos separatistas pró-russos contra os militares e milicianos ucranianos (13.372, dos quais 1372 russos). A estimativa de combatentes que já passaram pelas milícias ucranianas foi feita através de fontes abertas, ou seja, fotografias e comentários em fóruns e redes sociais, não se descartando a possibilidade de os números serem bem maiores, como ressalva o documento. Mas como se chegou a esta situação? A extrema-direita ucraniana já tinha saído das margens da política quando a Revolução EuroMaidan, contra o Presidente ucraniano Viktor Ianukovich, tomou as ruas de Kiev em 2013. Ianukovich, aliado do Presidente russo, Vladimir Putin, foi deposto e, pouco depois, em Março de 2014, Moscovo anexou a Crimeia e apoiou os separatistas de Donetsk e Lugansk, dando início a uma guerra que ainda hoje se arrasta e que já causou mais de 13 mil mortos, entre os quais muitos civis, e milhares de deslocados. Com o Exército ucraniano sem capacidade para combater os separatistas, o então recém-eleito Presidente ucraniano, Petro Poroshenko, apelou a voluntários que pegassem em armas contra a ameaça russa. Assim o fizeram, e em massa: foram formados entre 30 e 40 batalhões de voluntários para combater os separatistas. Um dos homens por trás deste esforço foi o oligarca Ilhor Kolomoiski, um dos dois homens mais ricos da Ucrânia e a sombra do Governo de Poroshenko e, agora, do de Zelenskii. Em 2014, rompeu com a discrição que o caracterizava e saiu em defesa da Ucrânia, dando entrevistas e financiando vários batalhões, entre os quais o Azov, o Dnipro 2, o Shakhtarsk e o Poltava. E, em Abril do mesmo ano, prometeu uma recompensa de dez mil dólares (nove mil euros) a quem capturasse um mercenário russo. Com o arrastar da guerra, Kolomoiski passou a usar os paramilitares que financia quase como exército privado, para obter dividendos políticos, entrando em choque com o actual Presidente ucraniano. “Os empresários precisam destes grupos como apoio físico, por ser muito mais fácil controlarem as suas estruturas empresariais. Os grupos de extrema-direita são parte deste mercado a favor dos grandes empresários”, disse ao PÚBLICO Viacheslav Likhachev, politólogo ucraniano especialista na extrema-direita do país. Uma das pessoas que responderam ao apelo de Poroshenko e recebeu dinheiro do oligarca Kolomoiski foi Andrii Biletski, líder do antigo partido neonazi Patriotas da Ucrânia, com a criação do então Batalhão Azov a 5 de Maio de 2014 — transformou-se depois em regimento e está em vias de se tornar divisão, apesar de ainda não ter militares suficientes (10 mil). A proeminência de Bilitski foi tanta que chegou a ser deputado entre 2014 e 2019, primeiro como independente e depois pelo braço político do Azov, o Corpo Nacional. Andriy Biletsky, ex-deputado e líder do partido de extrema-direita Corpo Nacional durante uma manifestação em Kiev contra a corrupção, em Março 2019 SERGEI CHUZAVKOV/SOPA IMAGES/LIGHTROCKET VIA GETTY IMAGESOs milicianos, com pouco treino, foram para as linhas da frente e as baixas tornaram-se incomportáveis, ao enfrentarem separatistas bem treinados e apoiados por Moscovo. A unidade paramilitar foi então integrada por Poroshenko na Guarda Nacional ucraniana a 12 de Novembro de 2014, no que foi visto como tentativa de a manter sob controlo e meio para lhe fornecer armamento militar topo de gama, fornecido pelos Estados Unidos (em 2018, o Congresso aprovou uma lei a proibir que material militar chegasse ao Azov, sem se saber como é aplicada na prática), União Europeia (não-letal, como coletes balísticos) e Canadá. Até Israel permitiu a produção da sua arma padrão, a Tavor-21, em fábricas ucranianas, acabando por chegar às mãos dos neonazis — o Azov tinha no seu site, na parte dos apoios, o logótipo da empresa israelita que detém a patente da espingarda de assalto. Hoje, o Azov dispõe de artilharia, blindados e infantaria, e até de campos de treino. O principal está localizado em Mariupol, no Sul da Ucrânia, na costa do mar de Azov, e lá são treinados os combatentes estrangeiros que respondem ao apelo para pegarem em armas em seu nome — a milícia fê-lo pouco depois de ser criada. Em 2015, os estrangeiros tinham um responsável que os seleccionava: Gaston Besson, mercenário francês que combateu no Camboja, Laos, Birmânia, Suriname e Croácia. Disse, na altura, que recebia centenas de contactos todos os dias. O regimento evoluiu de simples unidade paramilitar para movimento em larga escala, ganhando espaço e legitimando-se junto da sociedade, por os seus combatentes serem apresentados como heróis que enfrentam o expansionismo russo. O Azov é uma grande organização de extrema-direita que se descreve como Movimento Azov e responde a um único líder: Andrii Biletski. O movimento inclui várias organizações: o Regimento Azov, o partido Corpo Nacional, o movimento de rua Milícia Nacional, a Irmandade dos Veteranos, etc.. E tem outras na sua órbita de influências, muitas das quais neonazis, como a WotanJugend. Os paramilitares têm uma forte presença nas redes sociais, várias revistas e uma rádio e, sempre que um camarada de armas é morto em combate, organizam cerimónias com tochas e parada militar.
Infiltração no aparelho de Estado ------ O Movimento Azov infiltrou-se no Estado ucraniano e é hoje indissociável dele. Recebe milhares de euros em financiamento para programas de incentivo ao patriotismo direccionado à juventude (crianças com nove anos recebem treino militar, por exemplo), apoio político e militar. E essa infiltração é mesmo reconhecida pela secretária do Departamento Internacional do Corpo Nacional, Olena Semeniaka. “Em apenas quatro anos, o Movimento Azov tornou-se um pequeno Estado dentro do Estado”, escreveu a dirigente no Facebook a 29 de Outubro de 2018. O ministro do Interior de Poroshenko e do actual Presidente é acusado de ser um dos responsáveis pela crescente influência neonazi no aparelho de Estado ucraniano. Arsen Avakov tem beneficiado da unidade paramilitar para defender os seus interesses — apresenta-se como indispensável para a controlar e fez recentemente uma aliança com o multimilionário Ilhor Kolomoisky, que tem tido fricções com Zelenskii — e sai em defesa dos milicianos sempre que são alvo de críticas pelo seu cariz neonazi. Zelenskii também o faz, ainda que mais timidamente, e chegou até a condecorar os paramilitares do Azov por actos de bravura na linha da frente, ao mesmo tempo que se reúne com as suas altas patentes. Azov tem neste momento tanto poder que chega a rejeitar as ordens do chefe de Estado quando não concorda com elas, no que já é visto por analistas como uma ameaça ao próprio Estado ucraniano. No final de Outubro, o comandante supremo das Forças Armadas ordenou o recuo das tropas ucranianas de Zolote e de duas outras cidades para aumentar a distância entre as linhas da frente — eram de 30 metros, distância de arremesso de uma granada de mão — e evitar as constantes escaramuças e violações de cessar-fogo. O líder do Azov não gostou e ameaçou enviar dez mil voluntários para Zolote, para “defender as posições conquistadas com sangue”. Publicamente desafiado, Zelenskii foi à linha da frente para convencer os milicianos, mas acabou por os acusar de o considerarem um “tolo” e de lhe estarem a fazer um “ultimato”. Os milicianos mantiveram-se firmes e acabaram por ser desarmados por militares ucranianos e retirados da linha da frente, com a imprensa ucraniana a referir que se temia que a explosiva situação levasse ao derramamento de sangue. Olena Semeniaka: “Em apenas quatro anos, o Movimento Azov tornou-se um pequeno Estado dentro do Estado”Avakov teve um papel fundamental no desarmar da crise e, dentro do Governo, conquistou pontos, mostrando mais uma vez ser indispensável para a ordem interna. O seu poder depende daquilo a que a imprensa ucraniana diz ser um jogo duplo: apoiar as forças de segurança e militares e, ao mesmo tempo, os milicianos. A 28 de Outubro de 2019, Avakov visitou o campo de treino da unidade em Mariopol para lhe mostrar apoio público e, dias antes, deixou claro que “a força especial Azov é uma unidade legal da Guarda Nacional ucraniana e os seus militares têm sido exemplares nas tarefas de combate desempenhadas na defesa da pátria”. “A campanha de informação sobre a alegada propagação de ideologia nazi entre os militares é uma tentativa deliberada para descredibilizar a unidade, principalmente entre os parceiros internacionais da Ucrânia, e provocar uma crise na relação com os nossos aliados”, continuou o ministro. Ao nível da comunicação visual, o Regimento Azov tem demonstrado recentemente um cuidado particular para não ser conotado politicamente. --- Pátria Latina