A guerra na Ucrânia e o cinismo ocidental

Por JACQUES BAUD* - A Terra é Redonca - *Jacques Baud é ex-coronel do Estado Maior Geral e ex-membro da Inteligência Estratégica da Suíça. ------ Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel. -- Publicado originalmente pelo Centre Français de Recherche sur le Renseignement. -------- O que tornaria o conflito na Ucrânia mais censurável do que a guerra no Iraque, Afeganistão ou Líbia? ------ A caminho da guerra Durante anos, do Mali ao Afeganistão, trabalhei pela paz e arrisquei minha vida por isso. Não se trata, então, de justificar a guerra, mas de entender o que nos levou a ela. Percebo que os “especialistas” que se revezam nas telas de televisão analisam a situação com base em informações duvidosas, na maioria das vezes hipóteses transformadas em fatos, e por isso não conseguimos mais entender o que está acontecendo. É assim que se cria pânico. O problema não é tanto quem está certo neste conflito, mas como nossos líderes tomam suas decisões. Tentemos examinar as raízes do conflito. Comecemos com aqueles que nos últimos oito anos nos falaram sobre “separatistas” ou “independência” do Donbass. É falso. Os referendos realizados pelas duas autoproclamadas repúblicas de Donetsk e Lugansk em maio de 2014 não foram referendos sobre “independência” (независисимость), como alegaram alguns jornalistas inescrupulosos, mas sobre “autodeterminação” ou “autonomia” (самостоятельность). O termo “pró-russo” sugere que a Rússia era parte do conflito, o que não era o caso, e o termo “falantes de russo” teria sido mais honesto. Além disso, esses referendos foram realizados contra o conselho de Vladimir Putin. De fato, essas repúblicas não buscavam se separar da Ucrânia, mas sim ter um status de autonomia que lhes garantisse o uso da língua russa como língua oficial. Porque o primeiro ato legislativo do novo governo resultante da derrubada do presidente Yanukovych foi a abolição, em 23 de fevereiro de 2014, da lei Kivalov-Kolesnichenko, de 2012, que tornou o russo uma língua oficial. Um pouco como se os golpistas decidissem que o francês e o italiano não seriam mais as línguas oficiais da Suíça. Essa decisão causou agitação na população russo-falante. O que conduziu a uma repressão feroz nas regiões de língua russa (Odessa, Dniepropetrovsk, Kharkov, Lugansk e Donietsk), iniciada em fevereiro de 2014, e que levou à militarização da situação e a alguns massacres (em Odessa e Mariupol, os mais importantes). No final do verão de 2014, restavam apenas as já então autoproclamadas repúblicas de Donietsk e Lugansk. Nessa fase, demasiado rígidos e presos a uma abordagem doutrinária à arte operacional, o estado-maior ucraniano castigou aqueles que eram assumidos como “inimigos”, sem, no entanto, conseguir prevalecer. O exame do curso dos combates em 2014-2016 no Donbass mostra que o estado-maior ucraniano aplicou sistemática e mecanicamente os mesmos planos operacionais. No entanto, a guerra travada pelos então autonomistas era muito semelhante à que observamos no Sahel: operações altamente móveis realizadas com meios leves. Com uma abordagem mais flexível e menos doutrinária, os rebeldes conseguiram explorar a inércia das forças ucranianas para “pegá-las” repetidamente. Em 2014, eu me encontrava na OTAN, responsável pela luta contra a proliferação de armas menores, e, com minha equipe, buscava detectar entregas de armas russas aos rebeldes, para observar se Moscou estava envolvido. As informações que recebíamos vinham quase inteiramente dos serviços de inteligência poloneses e não “correspondiam” às informações da OSCE (Organization for Security and Co-operation in Europe: Organização para a Segurança e Cooperação na Europa): apesar das acusações bastante grosseiras, não observamos nenhuma entrega de armas e materiais militares russos. Os rebeldes se armavam graças às deserções de unidades ucranianas de língua russa que passavam para o lado rebelde. À medida que os fracassos ucranianos progrediam, batalhões inteiros de tanques, artilharia ou antiaérea aumentavam as fileiras dos autonomistas. Foi apenas isso o que levou os ucranianos a se comprometerem com os Acordos de Minsk. No entanto, logo após a assinatura do Acordo de Minsk 1, o presidente ucraniano Petro Poroshenko lançou uma grande operação “antiterrorista” (ATO: Антитерористична операція) contra o Donbass. Mal assessorados pelos oficiais da OTAN, os ucranianos sofreram uma derrota esmagadora em Debaltsievo, que os obrigou a se comprometer com o Acordo de Minsk 2. É essencial lembrar aqui que os Acordos de Minsk 1 (setembro de 2014) e Minsk 2 (fevereiro de 2015) não previam a separação ou independência das repúblicas, mas sua autonomia no âmbito da Ucrânia. Aqueles que leram os textos dos Acordos (são muito, muito, muito poucos) reconhecem que está cabalmente registrado que o status das “repúblicas” deveria ser negociado entre Kiev e os representantes delas, para buscar uma solução interna na Ucrânia. É por isso que, desde 2014, a Rússia exigiu sistematicamente sua implementação, recusando-se a participar das negociações, porque era um assunto interno da Ucrânia. Por outro lado, os ocidentais ― liderados pela França ― tentaram sistematicamente substituir os Acordos de Minsk pelo “formato da Normandia”, que opunha os russos aos ucranianos. No entanto, lembremos que nunca houve tropas russas no Donbass antes de 24 de fevereiro de 2022. Além disso, os monitores da OSCE jamais observaram o menor vestígio de unidades russas operando no Donbass. Assim, por exemplo, o mapa da inteligência dos Estados Unidos publicado pelo Washington Post em 3 de dezembro de 2021 não mostra tropas russas no Donbass. Em outubro de 2015, Vasyl Hrytsak, diretor do Serviço de Segurança da Ucrânia (SBU), confessou que apenas 56 combatentes de origem russa foram observados no Donbass. Esse é um número comparável à quantidade de suíços que foram lutar na Bósnia durante os fins de semana na década de 1990, ou então com o número de franceses que foram lutar na Ucrânia hoje. O exército ucraniano estava então em um estado deplorável. Em outubro de 2018, após quatro anos de guerra, o procurador-chefe militar da Ucrânia, Anatoly Matios, declarou que a Ucrânia havia perdido 2.700 homens no Donbass: 891 por doença, 318 por acidentes de trânsito, 177 por outros acidentes, 175 por envenenamento (álcool e drogas), 172 por manuseio descuidado de armas, 101 por violação das normas de segurança, 228 por homicídio e 615 por suicídio. De fato, o exército é minado pela corrupção de seus quadros e não tem mais o apoio da população. De acordo com um relatório do Ministério do Interior do Reino Unido, quando os reservistas foram convocados em março-abril de 2014, 70% não compareceram à primeira sessão, 80% não apareceram para a segunda, 90% para a terceira e 95% para a quarta. Em outubro/novembro de 2017, 70% dos chamados não apareceram durante a campanha de retorno de chamada “Outono 2017”. Isso não inclui suicídios e deserções (muitas vezes em benefício de autonomistas), que atingem até 30% da força de trabalho militar na zona ATO. Os jovens ucranianos se recusavam a ir ao Donbass para lutar e preferiam emigrar, o que também explica, pelo menos em parte, o déficit demográfico do país. O Ministério da Defesa da Ucrânia recorreu então à OTAN para obter ajuda para tornar as suas forças armadas mais “atraentes”. Tendo já trabalhado em projetos semelhantes no âmbito das Nações Unidas, a OTAN pediu-me para participar num programa destinado a restaurar a imagem das forças armadas ucranianas. Mas é um processo longo, e os ucranianos queriam ir rápido. Assim, para compensar a falta de soldados, o governo ucraniano recorreu a milícias paramilitares. Elas são essencialmente compostas por mercenários estrangeiros, muitas vezes ativistas de extrema direita. A partir de 2020, eles representam cerca de 40% das forças da Ucrânia e são cerca de 102.000 homens, de acordo com a Reuters. Eles são armados, financiados e treinados pelos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Canadá e França. São mais de 19 nacionalidades, incluindo a Suíça.
Portanto, as milícias de extrema-direita ucranianas foram claramente criadas e apoiadas pelos países ocidentais. Em outubro de 2021, o Jerusalem Post soou o alarme, ao denunciar o projeto Centuria. Essas milícias operam no Donbass desde 2014, com apoio ocidental. Ainda que o termo “nazista” seja discutível, o fato é que essas milícias são extremamente violentas, transmitem uma ideologia repugnante e são virulentamente antissemitas. Seu antissemitismo é “mais cultural do que político”, que é a única razão pela qual a qualificação “nazista” não seria apropriada. Seu ódio aos judeus deriva dos períodos de grandes fomes nos anos 1920-1930 na Ucrânia, resultantes do confisco de colheitas por Stalin, para financiar a modernização do Exército Vermelho. No entanto, este genocídio – conhecido na Ucrânia sob o nome de Holodomor – foi perpetrado pelo NKVD (ancestral da KGB), cujos altos escalões eram compostos principalmente por judeus. É por isso que hoje, extremistas ucranianos exigem de Israel desculpas pelos crimes do comunismo, como relata o Jerusalem Post. Assim, estamos muito longe da tese de uma “reescrita da história” por Vladimir Putin, como alegam alguns. Provenientes dos grupos de extrema direita que lideraram a revolução Euromaidan em 2014, essas milícias são formadas por indivíduos fanáticos e brutais. O mais conhecido deles é o regimento Azov, cujo emblema lembra o da 2ª Divisão SS Panzer Das Reich, que é verdadeiramente reverenciado na Ucrânia por ter libertado Kharkov dos soviéticos em 1943, antes de cometer o massacre de Oradour-sur-Glane em 1944, na França. Entre as figuras mais célebres do regimento Azov está o oposicionista bielorrusso Roman Protassevich, preso em 2021 pelas autoridades bielorrussas após o caso do voo FR4978 da RyanAir. Em 23 de maio de 2021 falou-se do suposto sequestro deliberado de um avião de passageiros por um MiG-29 – com a concordância de Putin – para prender Protassevich, embora as informações então disponíveis não confirmassem de forma alguma tal cenário. Era preciso, no entanto, mostrar que o presidente Lukashenko seria um delinquente e Protassevich um “jornalista” apaixonado pela democracia. Ainda que uma investigação bastante elucidativa de uma ONG americana em 2020 tenha demonstrado a militância de extrema direita de Protassevich, uma cuidadosa impostura ocidental põe-se então em movimento, e a falta de escrúpulos da mídia “limpa”, para todos os efeitos, sua biografia. Finalmente, em janeiro de 2022, é publicado o relatório da ICAO (International Civil Aviation Organization: Organização Internacional da Aviação Civil) que demonstra que, apesar de alguns erros processuais, a Bielorrússia agiu de acordo com os regulamentos em vigor e que o MiG-29 decolou 15 minutos depois que o piloto da RyanAir decidiu pousar em Minsk. Portanto, nada de conspiração da Bielorrússia e muito menos envolvendo Putin. E mais um detalhe: Protassevich, supostamente torturado pela polícia bielorrussa está hoje livre e acessível ao público pelo seu Twitter.