Chute na santa e israelização, as verdadeiras ameaças ao cristianismo no Brasil

Por Ualid Rabah*, especial para o Viomundo ----- O presidente Bolsonaro deu a entender, na sexta-feira, 2 de setembro, ao se dirigir a apoiadores no Rio Grande do Sul, que o Brasil está prestes a deixar de ser majoritariamente cristão. “Somos um país majoritariamente de cristãos, não admitiremos qualquer retrocesso nessa área, porque temos o povo e Deus ao nosso lado”. Palavras do presidente, de acordo com os veículos de comunicação. É difícil encontrar razão para esta afirmação. Se considerarmos apenas católicos e “evangélicos”, com a enormidade de igrejas – também designadas “denominações” – pentecostais e os cada vez mais residuais “protestantes”, o Brasil é, pelo menos, 85% cristão. Projeções baseadas em dados históricos do IBGE indicam que, em 2020, os católicos seriam 49,9% e os evangélicos, 31,8%. Ou seja, quase 82% da população brasileira. Considerando outras religiões declaradas cristãs, o total não será menor que 85% (86,8%, segundo censo de 2010). Os outros 15%, ainda pelo censo de 2010, são os sem religião (8%), os adeptos das demais dezenas – senão centenas – de religiões (3% a 3,5%), entre ascendentes, descendentes e algumas apenas estagnadas, e os espíritas (2%). Assim, não há desafio à maioria cristã no Brasil, salvo ao catolicismo, que enfrenta sérios problemas. Projeções para 2032 indicam empate em 40% com os “evangélicos”. Verdadeira catástrofe para os católicos, que, no censo de 1940, eram 95% contra 2,7% de evangélicos. Em 10 anos, a Igreja Católica poderá ser 57% menor do foi em 1940. Para voltar aos 95% de 1940, precisaria crescer 145% sobre o que poderá representar, pelas projeções, em 2032. No Brasil de hoje e no projetado para 10 anos, só o catolicismo declina. Logo, perde influência social, política e econômica, mas isso não se aplica ao cristianismo em geral. Se os números são comprovadamente em favor do cristianismo (apenas muda a composição em seu seio), o que justifica a fala presidencial? Qual seria a “ameaça”? A resposta é simples: nenhuma. Salvo se houver um inimigo imaginário sendo construído, espécie de quinta coluna interna que sirva de plano discursivo para criar pânico, também imaginário, para uma agenda desconhecida. A islamofobia, realidade anterior nos EUA e em parte da Europa como instrumento ideológico de justificação do colonialismo, importada para o Brasil recentemente, pode ser esse inimigo imaginário. Ganhou força nos últimos 20 anos graças ao alinhamento com Israel por conta dos negócios da fé. Ganham bilhões explorando – e distorcendo – a fé cristã. São as igrejas-empresa que se servem de alegorias e mitos contidos, basicamente, no Velho Testamento. Nada de Cristo ou de Novo Testamento. Narrativa inteiramente israelizada e símbolos do atual estado de Israel, como a bandeira, estão nos púlpitos. A limpeza étnica do povo palestino para colocar Israel no lugar é apresentada como realização de promessas “bíblicas”. E a islamofobia, neste contexto, é o motor desse ódio e intolerância religiosa no Brasil. Vem, portanto, dessas igrejas-empresa o grosso do discurso de ódio e intolerância religiosa e a promoção do racismo, com larga utilização do Velho Testamento para tanto. Foi o que fez, por exemplo, em 2011, o pastor-empresário e deputado federal Marco Feliciano ao afirmar que os africanos seriam descendentes de um “ancestral amaldiçoado por Noé” e que, por isso, “sobre o continente africano repousa a maldição do paganismo, ocultismo, misérias, doenças oriundas de lá: ebola, Aids. Fome…”. Feliciano usou passagem do Velho Testamento referente à “maldição de Noé sobre canaã”, que “toca seus descendentes diretos, os africanos”. Ódio e intolerância são as marcas de tais negócios da fé. São anteriores à atual fase em que se tornaram a verdadeira indústria de dinheiro e fake news de nossos dias. Mas o marco inicial para este ódio das demais religiões teve como alvo a Igreja Católica, não as demais religiões minoritárias, até porque estas já eram vítimas de preconceito e intolerância histórica no Brasil. O chute na santa foi o ato fundacional. Aconteceu em 12 de outubro de 1995, dia de Nossa Senhora Aparecida, a padroeira do Brasil. O “bispo” Sérgio Von Helder, que comandava o programa “O Despertar da Fé”, da Igreja Universal do Reino de Deus, de propriedade de Edir Macedo, um dos mais ricos empresários da fé em todo o mundo, chutou a imagem da santa e disse aos seus telespectadores: “(…) nós estamos mostrando às pessoas que isso não funciona, isso aqui não é santo coisa nenhuma (…) 500 reais – cinco salários mínimos – custa no supermercado essa imagem, e tem gente que compra! Agora se você quiser uma santa mais barata, você encontra até por 100 (reais) (…) Será que Deus, o Criador do universo, pode ser comparado a um boneco desse, tão feio, tão horrível, tão desgraçado?”. Foram esses novos vendilhões do templo e inventores da “Teologia da Prosperidade” que introduziram no Brasil a teologia do ódio e da intolerância. Uma cópia do “Evangelho do Apartheid”, que foi a justificativa “teológica” para a imposição do abjeto regime supremacista na África do Sul, que oprimiu o povo sul-africano de 1948 (oficialmente) a 1994, ano em que Nelson Mandela se torna o primeiro presidente negro deste país de maioria negra. A marca comum entre o “Evangelho do Apartheid” e a “teologia” do ódio, dita da “prosperidade”, é o uso intensivo do Velho Testamento, de um “deus” racializado que não cansa de pedir guerras e destruições de reinos, cidades e povos. Não por acaso, são esses empreiteiros da fé, que têm Israel como metrópole e estado e ao qual dedicam lealdade plena, que difundem a islamofobia no Brasil, bem como no restante do continente, ofendendo o catolicismo e todas as demais religiões. É bom lembrar que Israel se concretiza como projeto colonial e regime de Apartheid também em 1948, igualmente com uso dos mitos do Velho Testamento. A história registra que Israel e África do Sul se apoiaram mutuamente em tudo, mesmo quando o mundo boicotava e sancionava o regime sul-africano de Apartheid. Assim, não surpreende que os negócios da fé brasileiros promovam, a um só tempo, islamofobia, racismo aberto, perseguição às religiões de matriz africana e ódio aos católicos e outras igrejas cristãs. Afinal, sua fonte, o Velho Testamento, também é a matriz das experiências de Apartheid na África do Sul, relegado ao lixo da história, e na Palestina colonizada pela empreitada sionista, ainda em vigor. Em análise cuidadosa, vemos coisas perigosas acontecendo no Brasil, que vão do supremacismo religioso de grupos radicais e violentos, para os quais católicos e todas as demais religiões são alvo, à cooptação (chamam isso de “evangelização”) de setores importantes das forças de segurança pública (todas as polícias e forças armadas) e privada, assim como boa parte do crime organizado, que já ataca templos e fiéis de outras religiões, além de ostentar a bandeira de Israel em seus “territórios”. Aí, temos uma base “ideológica” (nada como matar em nome de “deus”!) e uma força bélica superior a um milhão de homens. Isso se soma à construção de uma espécie de “doutrina” – e “treinamento” – cívico-militar em muitas dessas igrejas-empresa. Então, não é alarmismo pedir atenção das autoridades e de toda a sociedade. Por tudo isso, o Brasil não corre risco de descristianização. Salvo se o real perigo, a israelização do cristianismo, for a preocupação presidencial. Afinal, a descristianização real é essa e se dá por dentro, como se fosse por ação de um anticristo coletivo. Ademais, é este o perigo que pode levar a uma guerra civil, à secessão territorial, a mortes e destruição, tudo regado a ódio e intolerância em nome de “deus”. E pensar que tudo começou com o chute à Santa, frente ao qual muito pouco se fez. Mas nunca é tarde para reagir. Afinal, a nossa bandeira é a do Brasil e jamais será a dos EUA ou a de Israel ou a do anticristo! -------------- *Ualid Rabah é presidente da FEPAL – Federação Árabe Palestina do Brasil