A Folha de São Paulo é um veículo jornalístico?

por Camila Ribeiro ----- Noam Chomsky escreveu que “A maneira inteligente de manter as pessoas passivas e obedientes é limitar estritamente o espectro de opiniões aceitáveis, mas permitir um debate muito animado dentro desse espectro”. Veículos de imprensa como Folha de São Paulo fizeram desta limitação de opiniões aceitáveis o seu ofício. Este jornal promoveu um pretenso debate “Julian Assange deve ser extraditado para os Estados Unidos?” dias após a finalização de audiências em corte de Londres do talvez último recurso de Assange para não ser extraditado. O que foi apresentado não foi nem mesmo formalmente um debate. O artigo pelo “SIM Assange deve ser extraditado” não se comunica com o artigo pelo NÃO, pois ambos artigos foram publicados no mesmo dia e na mesma hora e não houve sequência à exposição das duas opiniões opostas. Debate real implicaria réplicas às argumentações e um aprofundamento (mesmo que mínimo) do assunto em questão. Mas o problema real é que não caberia a um verdadeiro veículo de jornalismo abrir um debate sobre se um jornalista-editor deveria ser extraditado para o país cujos crimes ele denunciou para ser julgado por denunciar estes crimes. Um veículo de jornalismo de verdade jamais deveria promover um debate para discutir se jornalismo deveria ser criminalizado. Uma vez aberto o “debate”, é caso de perguntar se o editor da Folha de São Paulo entre 2010-2011 concordaria em ser extraditado como coautor dos “crimes” de que Julian Assange é acusado de cometer, ou seja, praticar jornalismo: receber, verificar, analisar, e publicar documentos verídicos e de interesse público. O dono do site de vazamentos de documentos Cryptome e ativista digital John Young tem requerido repetidamente que o governo dos EUA o indicie como coautor por publicar os mesmos documentos, mas até agora não foi atendido, o que comprova uma arbitrária perseguição do governo dos EUA contra Julian Assange. Assange está arriscado de ser processado por publicar exatamente o mesmo material que FSP publicou entre 2010-2011, o Cablegate, o conjunto de documentos diplomáticos dos Estados Unidos produzidos entre os anos de 1970-2010 que revelam como realmente se deu (e se dá) a política internacional dirigida pelos EUA: a interferência indevida e mesmo criminosa dos EUA sobre centenas de países para destruir economias rivais. Cablegate e outros pacotes de documentos que fazem parte do processo comprovam sistemática instigação de golpes de estado, prática de crimes de guerra e contra a humanidade, incluindo uso de armas proibidas, tortura, sequestros e assassinatos de civis, especialmente no Oriente Médio. Os documentos relacionados ao Brasil mais recentes comprovam conluio de embaixadores com políticos e funcionários de estado para interferir em políticas industriais e comerciais, incluindo a partilha do pré-sal. Conluio esse que gerou anos depois a Operação Lava Jato. Todos esses verdadeiros crimes cometidos pelo governo dos EUA têm recebido da FSP ao longo dos últimos anos uma descrição nebulosa que facilmente induz à confusão: “segredos de estado”, “irregularidades”, “documentos secretos das Forças Armadas americanas”. FSP nos últimos anos também não esclarece que “segredos de estado” e “segurança nacional” não devem em democracias servir de proteção para criminosos jamais serem expostos. Como não cabe a jornalistas e veículos jornalísticos se omitir de denunciar crimes sob a desculpa de preocupação com “segurança nacional”. Muito pelo contrário, cabe ao Jornalismo ser o vigia do Poder.
Caberia a FSP, como veículo de jornalismo, explicar ao seu público leitor a natureza real dos documentos revelados por Assange, e não promover a contínua mistificação de um processo que jamais deveria ter sido iniciado, pelo bem da liberdade de imprensa, mas que se arrasta há quase 5 anos, exatamente porquê certos veículos de imprensa pretensamente imparciais promovem desinformação acerca deste processo, acerca dos documentos revelados que provocaram a perseguição contra Assange, e acerca da própria pessoa Assange como profissional de imprensa. Este jornalista e editor tem frequentemente seu status profissional negado ou ofuscado pelo uso de termos como “fundador do WikiLeaks”, “dono do site de vazamentos”, hacker, desenvolvedor de software, cyber-ativista. Somente no período de 2022-2024 na FSP, entre 25 textos em que Assange é mencionado, somente em 7 textos ele é tratado como jornalista ou editor. Se FSP e a responsável pelo artigo do “SIM” têm dúvidas sobre a profissão de Assange, dezenas de instituições em todo o mundo ao longo dos anos têm premiado Assange pelo trabalho jornalístico que provocou o processo de extradição e pode render para ele prisão perpétua e até mesmo pena de morte. Por um lado, os primeiros 5 jornais que fizeram parceria com WikiLeaks publicaram carta aberta apoiando a libertação de Assange por entenderem que este processo põe em risco a atividade de jornalismo no mundo: Der Spiegel, The Guardian, The New York Times, Le Monde, El País; por outro lado, o sexto parceiro, a Folha de São Paulo se coloca como alheia ao processo que diz respeito inteiramente à liberdade de imprensa, à transparência de governos, de empresas e de instituições, ao direito do cidadão saber o que poderosos fazem com tanto poder e com o dinheiro de impostos dos contribuintes. Se a Folha de São Paulo é realmente um veículo de jornalismo, onde está o seu artigo: - Explicando que as acusações contra Assange são nominalmente espionagem, mas de fato ele está sendo processado pelo governo dos EUA de cometer atos típicos de jornalismo? - Explicando que a acusação feita contra Assange de ser espião invalida o processo de extradição? Espionagem é o crime político clássico que impediria uma extradição pelo tratado do Reino Unido com EUA e por qualquer tratado de extradição entre países civilizados. - Explicando que a lei de espionagem não foi escrita para ser aplicada contra editores e jornalistas, e que não se aplica ao Reino Unido? E, portanto, não deveria sequer ser admitida em processo de extradição. - Explicando que Assange teve seus direitos violados, incluindo o direito de asilo político na embaixada do Equador, onde ele se refugiou e de onde ele foi arrancado ilegalmente pela polícia londrina, que assim violou o direito internacional ao sequestrar Assange de território protegido por leis internacionais? Repercutindo o processo na Justiça da Espanha que Assange move contra a empresa de segurança que foi contratada para fazer a proteção da embaixada do Equador em Londres e dele próprio, mas que foi secretamente contratada para espionar Assange dentro da embaixada, incluindo gravar todas as conversas que Assange teve com seus advogados, conversas que deveriam estar protegidas por sigilo? Apenas esta espionagem feita a mando da CIA seria suficiente para anular qualquer processo do governo dos EUA contra Assange. - Repercutindo o detalhado artigo publicado pelo Yahoo! News em 2021 que comprova que além de espionar Assange, a CIA também criou planos de sequestrá-lo e matá-lo em 2017, após WikiLeaks revelar o arsenal de espionagem que a CIA criou para espionar o mundo inteiro?, e sem esquecer do detalhe importantíssimo que em audiência na corte no último fevereiro a equipe de acusação dos EUA admitiu que Assange pode sim ser condenado à pena de morte, possibilidade esta que deveria impedir a extradição? O Reino Unido não deveria permitir a extradição de Assange por que ele não teria as proteções da primeira emenda da Constituição dos EUA (proteção de liberdade de expressão) por ele não ser um americano e a lei de espionagem não permitir a defesa de interesse público (direito de informação). Assange também não deveria ser extraditado porquê ele não receberia um julgamento justo, pois o júri que o julgaria é formado por agentes de espionagem, ou seja, pessoas naturalmente propensas a condenar Assange. O que explica um jornal do porte da Folha de São Paulo não encarregar um jornalista competente para se inteirar do caso e fazer uma série de artigos informando ao público leitor sobre a gravidade de extraditar um jornalista por praticar jornalismo, inclusive sobre as consequências geopolíticas para as quais o próprio Assange alertou? "Olhando para isto de uma perspectiva geopolítica, o que está acontecendo não é simplesmente uma tendência crescente para o autoritarismo no Ocidente. Há um desejo e um método sendo erguido pelos Estados Unidos, principalmente para se envolverem numa apropriação extraterritorial de terras através do abuso da lei. Onde EUA tenta aplicar a sua jurisdição a todos os países do mundo para chegar a outros países e destruir sua soberania; exigindo que as leis dos EUA se apliquem ao seu território. Agora, se você controla as leis de um país estrangeiro, se você diz que suas leis se aplicam ao interior de um país estrangeiro, isso é o mesmo que ter um controle efetivo sobre a população de um país estrangeiro, o que é o mesmo que, de certa forma, anexar aquele país estrangeiro. Agora, EUA tem feito isto de forma unilateral, reivindicando jurisdição universal em relação a tudo o que dizem ter a ver com a segurança nacional, incluindo publicação, jornalismo.” – Julian Assange em vídeo do Instagram de sua esposa e advogada Stella. Stella Assange credita às últimas manifestações de apoio popular nas redes sociais e nas ruas pela não imediata publicação de decisão dos juízes em favor da extradição, tendo em vista que os mesmos juízes, como os anteriores no processo, estão comprovadamente relacionados ao complexo militar e de espionagem dos EUA e do Reino Unido (como tem sido provado em série de artigos do site Declassified UK). O artigo pelo SIM à extradição repete velhas falsas acusações já refutadas no processo de Chelsea Manning. Assange foi inocentado por Manning inteiramente da acusação de hackeamento, a soldado que fez o vazamento e muito mais pessoas tinham acesso irrestrito aos documentos revelados, sendo totalmente desnecessário o auxílio de um hacker. Esta explicação foi aceita como fato no processo de Manning, ou seja, a acusação de hackeamento no processo de extradição é um ato de falsidade contra a própria Justiça dos EUA. Em 2020, na primeira instância do processo de extradição, Assange foi inocentado por várias testemunhas de ser responsável por vazar os nomes não editados. Em nenhum momento, em nenhum julgamento, nestes 14 anos, EUA apresentou um único nome de pessoa que tenha sido prejudicada por ter seu nome exposto pelas revelações do WikiLeaks. Por outro lado, centenas de vítimas de sequestro e tortura nas prisões de Guantánamo e de Abu Ghraib foram libertadas por causa dos vazamentos feitos por Assange. Milhares de civis (incluindo mulheres, crianças e idosos) que estavam desaparecidas tiveram finalmente suas mortes por assassinato oficializadas através dos vazamentos dos documentos das guerras de Afeganistão e Iraque. Incluindo os jornalistas da Reuters que foram massacrados por militares americanos em 2007 e somente tiveram seus assassinatos elucidados em 2010, quando WikiLeaks publicou o vídeo “Collateral Murder”. Neste vídeo, onde os militares dentro de um helicóptero que sobrevoa Bagdá se comportam como se estivessem jogando videogame ao metralhar mais de 10 pessoas, as mortes de civis iraquianos “em incidentes isolados” são graficamente provadas como práticas cotidianas e protocoladas. Os documentos registrando aos milhares esses “assassinatos colaterais” revelaram que o que ocorria nas campanhas de “guerra ao terror” na verdade eram campanhas de terrorismo do estado americano contra populações previamente desumanizadas como “terroristas fanáticos” por mentiras propagadas pela imprensa ocidental. Estas são as verdadeiras vítimas que tiveram alguma justiça exatamente porquê documentos sob sigilo de “segurança nacional” foram publicados pelo WikiLeaks. Extraditar Julian Assange por ter publicado a documentação que comprova estes crimes seria sequestrar, torturar e matar novamente estas pessoas. Manning, a pessoa responsável pelos vazamentos dos milhares de documentos que são a matéria-base da acusação contra Assange está livre. Cidadã e militar estado-unidense, e, portanto, passível de ser acusada de traição e espionagem, a soldado Manning teve pena comutada pelo presidente Obama após cumprir alguns anos de prisão. Por que então, Julian Assange, um editor-jornalista e cidadão australiano que jamais teve qualquer vínculo de trabalho e muito menos de lealdade com EUA deveria ser extraditado e processado por tão somente praticar jornalismo? Não, EUA não tem direito de julgar a pessoa que expôs os crimes cometidos pelo EUA. Os nazistas teriam direito de julgar pessoas que expuseram os crimes dos nazistas? Não, Assange não está à sombra da Justiça. Assange está há quase 12 anos sob alguma forma de regime de detenção arbitrária (como declarou comissão da ONU em 2016), pois ele jamais foi condenado ou sequer indiciado na Inglaterra; 12 anos sem ser exposto à luz do sol (o que provocou nele osteoporose aos 50 anos de idade) e está há quase 5 anos sob regime de solitária (cerca de 1.800 dias sem ver ninguém por 23,5 horas diárias); e jamais teve direito de se preparar para defesa, e tem sido tratado como condenados por crimes violentos não são tratados pela Justiça. A luta de Assange é exatamente para ser exposto à luz da justiça para ter de volta seus direitos respeitados, para sair do limbo jurídico em que está sem ser jogado em outra masmorra em condições similares às de Guantánamo ou de Abu Ghraib.
Um processo claramente político (e denunciado como tal por centenas de entidades de imprensa em todo o mundo, mas não pela FSP), demanda um apoio gigantesco popular para que justiça ocorra. Não basta que este processo seja orquestrado por um judiciário que serve ao imperialismo britânico e americano, ter uma imprensa corporativa que ora fica em silêncio, ora joga lama sobre Assange, falsos debates promovidos por grupos como Folha têm o efeito de esvaziar este apoio popular ou evitar que este apoio cresça exatamente nos momentos decisivos. Em 2011 Julian Assange discursou no centro de Londres para uma multidão na manifestação pacifista “Antiwar Mass Assembly”. Neste discurso Assange apontou a responsabilidade dos meios de comunicação corporativos em transmitir um conjunto de mentiras que enganam e aliciam populações de países (democráticos ou pseudodemocráticos do Ocidente) para concordar com guerras. Assange convida o público a perguntar: “Qual é a contagem média de mortes atribuída a cada jornalista? (da mídia corporativa)” no que Assange denomina “Guerra pela Mídia”. Nos últimos 5 meses, mais e mais pessoas formam multidões em cidades do mundo todo exigindo um cessar-fogo imediato em Gaza e o fim do regime criminoso, brutal e genocida de colonização israelense na Palestina. Multidões que em outras circunstâncias e com apoio da mídia corporativa seriam suficientes para derrubar governos e mesmo provocar revoluções. Mas isso não vem ocorrendo. Líderes políticos no Ocidente, envolvidos até o talo com a máquina bélica que lucra com cada assassinato em Gaza, seguem apoiando a campanha genocida de Israel, porquê sabem que podem contar com uma mídia corporativa que continuará a mentir, distorcer, omitir fatos que por si mesmos comprovam genocídio. O quanto de responsabilidade deverá ser conferida a este jornal (entre outros) pelo prolongamento do processo de extradição de Julian Assange? O Relator Especial da ONU para tortura e maus-tratos professor Nils Melzer definiu como participante ativa de tortura psicológica todo órgão de imprensa que ecoa o discurso dos organismos de estados que perseguem Assange. Qual seria a percentagem de responsabilidade por cada jornal no Ocidente que não luta pela libertação de Julian Assange, mas que por omissão ou ação contribui para mantê-lo preso? As mídias corporativas que agora estão claramente defendendo o “direito de Israel se defender” são as mesmas mídias que não conferem a Assange o status de jornalista e não educam seu público para a gravidade do significado que é um país criminoso de guerra obter na Justiça o direito de processar e condenar o jornalista que denunciou os crimes deste país. O que está em jogo no processo de extradição de Assange é o futuro de populações que serão as próximas vítimas de guerras “contra o terror” ou “contra as drogas” e de indivíduos e grupos que serão vítimas de guerras jurídico-midiáticas “contra a corrupção” ou contra a “espionagem” que fere a “segurança nacional dos EUA”. O que está em jogo, além da própria vida de Julian Assange, é sabermos se criminosos de guerra profissionais continuarão a agir sem medo de serem processados em cortes internacionais onde os países associados a OTAN não têm poder de veto. E quando se lê “criminosos de guerra” leia-se também: meios de comunicação que não defendem jornalistas, que hierarquizam culturas e civilizações e classificam povos como dignos ou indignos de existirem e assim fazem propaganda de guerra. --------- Camila Ribeiro ----------- Pela Campanha Pela Libertação de Julian Assange