Estudantes massacrados: onde está a liberdade nos EUA?

-------------- A brutal repressão contra os estudantes das universidades de Columbia e da Califórnia mostra que o absolutismo da liberdade de expressão não é universal. ----------- Por Marcelo Hailer - Revista Forum -------- Como um grande eco de 1968, milhares de universitários deram início no final de abril de 2024 a acampamentos, manifestações e ocupações em vários campi de universidades ao redor dos Estados Unidos. Um cartaz da ocupação da Universidade de Columbia resume o sentimento e a reivindicação comum que une o movimento que se espalhou pelas instituições de ensino superior de todos os Estados Unidos: "Desinvestir todas as finanças, incluindo a doação, de corporações que lucram com o apartheid, o genocídio e a ocupação israelense na Palestina". No momento em que este texto é redigido, mais de 80 campi nos EUA são palco de manifestações, acampamentos e uma série de atividades que pedem o fim da ocupação em Gaza e que as instituições acadêmicas cortem os laços com Israel e com as empresas que lucram com o conflito que tem massacrado o povo palestino. ----------- O massacre de Columbia---- Epicentro do movimento que se espalharia pelos Estados Unidos, os estudantes de Columbia organizaram um imenso acampamento dentro do campus da Universidade, que é uma das principais do país, localizada em Manhattan e membra da Ivy League, composta por oito instituições de ensino classificadas como de elite. Após forte repressão e perseguição por parte da direção da universidade, os estudantes ocuparam, em 29 de abril, o histórico prédio Hamilton Hall, localizado no campus Manhattan. A partir daí foi dado início a horas de tensão: a reitoria iria negociar ou autorizar a Polícia de Nova York a invadir o prédio e retirar os estudantes? Horas antes da invasão policial, a Fórum conversou com um estudante da Universidade de Columbia que já previa que o pior ia acontecer, ou seja, de que a polícia seria autorizada a entrar no campus. "A NYPD [Polícia de Nova York] está trazendo vários comboios, aqueles comboios enormes para prender os alunos mesmo, eu acredito. Estão parados todos nas 110. Eu não sei se isso é só para eles ficarem parados aqui caso a administração ordene que eles entrem ou se eles realmente já estão a postos para prender os alunos. Mas, se isso acontecer, eu tenho certeza que vai ser bem catastrófico", disse o estudante de Columbia. Como previsto, o pior aconteceu: a Polícia de Nova York (NYPD) invadiu o prédio da Universidade de Columbia e retirou, com brutal violência, os estudantes que haviam ocupado a instituição. Como se estivessem prontos para a guerra, centenas de agentes arremessaram, literalmente, os manifestantes. Segundo o promotor distrital de Manhattan, Alvin Bragg, foram executadas 282 prisões e o campus seguirá ocupado pela polícia por tempo indeterminado ou até o retorno das aulas. Menos de 24 horas após as cenas de repressão na Universidade de Columbia, seria a vez da Universidade de Califórnia também ser transformada num campo de batalha. Até snipers foram convocados para colocar um fim ao acampamento dos estudantes pró-Palestina. ---------- Biden defende linha dura contra manifestantes----- Após as cenas de violência policial na Universidade de Columbia e UCLA, e com um saldo de mais de 700 pessoas presas, o presidente Biden foi pressionado a se pronunciar e jogou um balde de água fria naqueles que esperavam um aceno pró-movimento estudantil. "Não somos uma nação autoritária onde silenciamos as pessoas e sufocamos a dissidência. Mas também não somos um país sem lei. Somos uma sociedade civil. E a ordem deve prevalecer. O protesto pacífico está na melhor tradição de como os americanos respondem a questões importantes, mas destruir propriedades não é um protesto pacífico. É contra a lei", declarou Joe Biden. No entanto, sobre a violência policial e o ataque de milícias sionistas contra estudantes na UCLA, o presidente dos EUA nada falou. "Vandalismo, invasão, quebrar janelas, fechar campus, forçar o cancelamento de aulas e formaturas - nada disso é um protesto pacífico. Ameaçar pessoas, intimidar pessoas, instilar medo nas pessoas não é protesto pacífico. É contra a lei", continuou Biden. Por fim, o presidente dos EUA reforçou a linha "lei e ordem". "Eu entendo que as pessoas têm sentimentos fortes e convicções profundas. Na América respeitamos o direito e protegemos o direito delas de expressar isso. Mas isso não significa que tudo é permitido", finalizou Joe Biden. -------- Onde está a liberdade total da Primeira Emenda dos EUA?----- Com a forte repressão aos estudantes pró-Palestina, um debate voltou às discussões políticas nos Estados Unidos: até onde vai a liberdade total de expressão presente na Primeira Emenda da Constituição do país? Para o professor de história e pesquisador Rafael Ioris, da Universidade de Denver, a repressão contra os estudantes mostra, mais uma vez, que absolutismo na Primeira Emenda é relativo. “Essa questão da repressão, questionar a noção de ‘terra da liberdade’, não é novo isso, [os EUA] têm uma longa história de repressão policial, de repressão às minorias, violência policial, ataques aos estudantes, como demonstrado nos anos 1960. Normalmente, essa interpretação mais absolutista dessa noção do direito absoluto de liberdade de expressão, vindo da Primeira Emenda da Constituição, se aplica muito mais a pautas conservadoras”, inicia Ioris. “Você pode ter que defender o direito aos neonazistas se manifestarem, mas, historicamente, quando temos manifestações de esquerda, a perseguição aos comunistas durante a Guerra Fria, a perseguição aos estudantes progressistas nos anos 1960, e agora, percebe-se que não é bem assim. Ou seja, essa interpretação absolutista sempre é enviesada”, sacramenta o pesquisador Rafael Ioris. Hugo Albuquerque, editor da Autonomia Literária e pesquisador em políticas internacionais, segue uma linha de raciocínio semelhante à de Rafael Ioris. “Essa repressão coloca em xeque a ideia de terra de liberdade dos Estados Unidos, mas isso na conjuntura atual, porque se a gente pesquisar a história recente americana e falar dos últimos 60 anos, vamos lembrar da luta por direitos civis e como a população negra ainda não estava em estado de igualdade com os brancos em plenos anos 60, e depois quando a igualdade formal finalmente veio, as organizações do movimento negro foram simplesmente perseguidas, e a população negra de um modo geral hoje consiste em 40% da população carcerária americana, embora seja só 12% da população total”, analisa Albuquerque. “Então, são números importantes para a gente ter noção de que a tal da liberdade de expressão total nos Estados Unidos sempre mascarou um elemento de classe com condão racial e social, onde organizações brancas, supremacistas, sempre conseguiram se utilizar da primeira emenda em relação à liberdade de expressão ou se utilizar do direito constitucional a portar armas, mas sempre que foram minorias étnicas oprimidas a recorrerem aos mesmos expedientes jurídicos, esses grupos sempre foram perseguidos nos Estados Unidos. Então, há um grande mito da liberdade de expressão ampla nos Estados Unidos. Ela sempre foi seletiva, sempre teve o seu lugar racial e de renda na sociedade americana”, destaca Hugo Albuquerque. Tanto Rafael Ioris quanto Hugo Albuquerque acreditam que as repressões aos movimentos estudantis pró-palestina colocam Joe Biden em uma situação ainda mais complicada e que pode gerar uma desmobilização dos mais jovens em irem votar, o que, consequentemente, fortalece a candidatura de Donald Trump. “Como isso vai afetar a candidatura do Biden? Bom, desmobiliza esse setor do segmento da sociedade, que poderia ser importante ir para as ruas, fazer campanha para o Biden, que são os estudantes. Não é um grupo quantitativamente grande, estudantes nas mais progressistas das universidades da elite do país, mas rompe um pouco essa ideia entre os jovens de que é importante reeleger o Biden. Já existe uma certa apatia nesse sentido, mas consolida um pouco esse desgaste do Biden entre os jovens, entre os mais progressistas, minorias, que estão aí mobilizadas por pautas mais progressistas, e reforça o discurso da lei da ordem dos republicanos, especialmente do Trump. Então, sem dúvida, apresenta aí um novo desafio para a campanha do Biden”, afirma Rafael Ioris. "Isso pode ser fatal para a candidatura do Biden. A proibição do TikTok, quando vier à tona, juntamente com uma escalada de repressão, prisões e uma nova legislação que tenta equiparar o antissionismo ao antissemitismo, com fins punitivos. Quando tudo isso vier à tona e a poeira baixar nos próximos meses, teremos um cenário muito negativo para o Biden. E quando houver uma indiferenciação entre ele e o Donald Trump, corremos um risco enorme de ver o Donald Trump com uma enorme vantagem contra o Biden. Provavelmente teremos uma grande bolha de desistência eleitoral que favorecerá o Donald Trump, fortalecendo sua candidatura, à medida que o Biden deixa de ser percebido como uma alternativa real à extrema direita e se torna apenas mais um alinhamento de extrema direita", conclui Hugo Albuquerque.