Afinal, todos sabem que os vampiros são imortais. No máximo eles adormecem, mas retornam à vida porque estão condenados a viver eternamente, como o nosso Vampiro de Curitiba, Dalton Trevisan, que conquistou com seu talento o patamar de imortalidade com sua maravilhosa obra literária - mais de 50. Considerado por muitos o maior contista do país, venceu o Jabuti e o Camões, o prêmio máximo para autores de língua portuguesa.
Nas decadas de 70 e 80 seus livros fizeram sucesso e continuam fazendo. As pessoas comentavam que o escritor era visto vagando nas noites curitibanas, teria um banco preferido no Passeio Público, ao lado de prostitutas, de onde viria grande parte de sua inspiração. Verdade ou mentira? Quem sabe?
Fatos que marcaram gerações de curitibanos e paranaenses, além de seus contos curtos, incisivos como os dentes de um vampiro, foram a criação da Revista Joaquim, artigos poéticos como o que denunciava o coração de acrílico da Curitiba esnobe e fascista, e a guerra a uma igreja evangélica do deus surdo (existem várias), que incomodava a vizinhança nas proximidades de sua casa com poluição sonora.
Dalton Trevisan conhecia e evitava a imprensa canalha. Sua última entrevista foi no ano de 1972.
Aos 99 anos de idade o Vampiro de Curitiba nos deixou nesta segunda-feira. O velório foi aberto ao público, a pedido do escritor.
Dalton Trevisan é um desses escritores que deixaram pérolas de talento para a imortalidade. Suas obra trouxe satisfação e admiração para aqueles que tiveram a oportunidade e o privilégio de conhecer parte do seu legado. Era comum nas decadas de 60 e 70 algumas pessoas contarem que teriam visto o escritor em ruas escuras e desertas da cidade. Na maioria das vezes era mentira. Porque verdade mesmo é reconhecer que o Vampiro de Curitiba não morreu, apenas adormeceu, descansou aos 99 anos de idade - uma eternidade.
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José Gil, ex-presidente do Conselho Nacional de Cineclubes
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Dalton Trevisan na Avenida XV de Novembro, em Curitiba Foto: Alberto Viana
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Texto de Dalton Trevisan sobre Curitiba:
CANÇÃO DO EXÍLIO -------
Não permita Deus que eu morra
sem que daqui me vá
sem que diga adeus ao pinheiro
onde já não canta o sabiá
morrer ó supremo desfrute
em Curitiba é que não dá
com o poetinha bem viu o que fizeram
o Fafau e o Xaxufa gorjeando os versinhos
na missa das seis na Igreja da Ordem
o trêfego Jaime batia palminha
em Curitiba a morte não é séria
um vereador gaiato já te muda em nome de rua
ao menos fosse de mulheres da vida
nem pensar no necrológico
o Wanderlei já imaginou
ó santo Deus não o Wanderlei
sem contar a sessão pública dos onze positivistas
Oficiada pelo grão-mestre Davi
Nessa hora você desiste da própria morte
em Curitiba é que não dá
o Silvio iria filmar tua vida
melhor não ter vivido
dirá o Edu que foi teu amigo de infância
antes nunca ter tido infância
muito menos amigo
tudo faça para não morrer
em ú1timo caso
que seja longe de Curitiba
não avise mulher nem filho
nada de orador a beira do túmulo
já imaginou o presidente da OAB pipilando o verso
os trezentos milhões da Academia Paranaense
arrastando-se de maca bengala cadeira de roda.
lá vem a desgracida dona Mercedes
com o chumaço de algodão
para tapar tua narina olho ouvido
porque o ouvido não sei
ah ser morto o mais longe da dona Mercedes
bem lacrada a tampa do teu caixão
a juriti não há de chorar lágrimas fingidas
a Rosa Maria não dirá
cismou sozinho à noite
nem o tremendo Iberê no artigo de fundo
fuja da missa de sétimo dia
tudo menos a famosa missa do sétimo dia
cantada em falsete pelo Dom Fedalto
castigo bastante é viver em Curitiba
morrer em Curitiba que não dá
não permita Deus
só bem longe daqui
mais prazeres encontro eu lá
o que tanto em vida se defendeu
nem morto já entregue
às baratas leprosas com caspa na sobrancelha
aos ratos piolhentos de gravatinha-borboleta
sem esquecer das corruíras nanicas
trincando broinhas de fubá mimoso
ah nunca morrer em Curitiba
para sofrer até o Juízo Final
a araponga louca da meia-noite
o Vinholes e o Mazza gorgeando os primores
que tais não encontro eu cá
não permita Deus
sem que daqui me vá
minha terra já não tem pinheiro
o sabiá não canta mais
perdeu as penas enterrou no peito o bico afiado
de sangue e tingiu a água sulfurosa do rio Belém
ao último pinheiro
foi demais o dentinho de ouro do
ex-padre Emir
com raízes e tudo arrancou-se das pedras
montou numa nuvem ligeira
e voou sim voou sobre as asas do bem-te-vi
em Curitiba o teu fim
crucificado assim numa trovinha do Salomão assim
consolo único
são as flores roxas de pano
na eterna saudade da Valquíria
embebendo em gasolina o vestido negro de cetim
e ateando fogo
dura e difícil de entender
a maldição do velho Jeová de guerra
teu velório será no salão nobre da Reitoria
rondando a porta lá estarão os carrinhos
de amendoim algodão-doce pipoca
batatinha frita melancia em fatia
se a gente não morre em surdina
bem longe de Curitiba
a repórter Margarita anuncia no jornal das oito
que você foi enterrado vivo
tem rosto irreconhecível
porém colorido
aparecerá no próximo capítulo da novela
podes crer amizade
agora vem o Emiliano
que é doce morrer em Curitiba
para tua bostica de Curitiba
isto aqui ô babaca
veja o que fizeram com a Maria Bueno
depois de santa é líder feminista
no bosque das flores murchas do Boca Rouge
por sete dinheiros
pagos pelo nego pachola e o polaquinho fanho
o Esmaga cuspirá no retrato do teu túmulo
ó supremo desfrute
em Curitiba é que não dá
não permita Deus que eu morra
sem que daqui me vá
nunca mais aviste os pinheiros
onde já não canta o sabiá