Foto: O presidente Jair Bolsonaro, na Academia Militar das Agulhas Negras, em 2019. Foto: Marcos Corrêa/PR -
Por José Luís Fiori e William Nozaki*, em Carta Capital, via Blog do Jeferson Miola -
Existe uma psicologia bem compreendida da incompetência militar […]. Norman Dixon argumenta que a vida militar, com todo o seu tédio, repele os talentosos, deixando as mediocridades, sem inteligência e iniciativa, subirem na hierarquia. No momento em que alcançam cargos importantes de tomada de decisão, essas pessoas tendem a sofrer alguma decadência intelectual. Um mau comandante, argumenta Dixon, nunca quer ou é incapaz de mudar de rumo quando toma a decisão errada.
Ferguson, N. Catástrofe. Editora Planeta, São Paulo, 2022, p. 184
Qualquer pessoa de bom-senso se pergunta: como uma parcela importante dos militares brasileiros chegou ao ponto de conceber e levar adiante um governo militarizado e aliado a grupos e pessoas movidas por reacionarismo religioso e um fanatismo econômico e ideológico ultrapassados, todos “escondidos” atrás de um personagem grotesco e um “mau militar”, como afirmou Ernesto Geisel?
O historiador britânico Niall Ferguson defende a tese da incompetência universal dos militares para o exercício do governo democrático.
E aponta algumas razões para tal incapacidade a partir da própria vida interna dos quartéis e da carreira militar.
No caso específico dos militares brasileiros, há um contingente que vem se dedicando, há três anos, a desmontar aquilo que seus antecessores do século passado mais prezavam: o setor energético brasileiro.
Os militares brasileiros sempre tiveram uma visão elitista e caricatural do Brasil. Imaginam um país sem cidadãos e veem as classes sociais com desconfiança, como uma ameaça à ordem definida por eles.
Dentro desta concepção, sempre se consideraram os verdadeiros responsáveis pela moral pública e pela definição do que fosse o “interesse nacional”.
Num determinado momento da história brasileira, os militares entenderam que era importante que o país tivesse projetos industrializantes.
No momento seguinte, contudo, eles redefinem seu próprio conceito de “interesse nacional”, invertem a estratégia econômica dos seus antecessores e promovem a privatização selvagem das empresas públicas, ao mesmo tempo que apoiam a desindustrialização da economia brasileira e seu retorno à condição primário-exportadora do início do século passado.
Como é sabido, as Forças Armadas brasileiras tiveram uma participação ativa na construção da Petrobras, da Eletrobras, do Gasoduto Brasil-Bolívia, da Itaipu Binacional e inúmeras outras empresas estatais em setores estratégicos para o desenvolvimento da economia nacional.
Mas hoje, como já dissemos, dedicam-se ao desmonte dessas mesmas empresas e setores econômicos, sem nenhum tipo de justificação estratégica de mais longo prazo, sobretudo no caso do setor energético, que é peça essencial da “segurança nacional” de qualquer país do mundo.
Veja-se o caso do Ministério de Minas e Energia, um dos mais militarizados do governo Bolsonaro: além do Ministro-Almirante, o gabinete ministerial conta com a presença de mais vinte militares, da ativa ou da reserva, ocupando cargos de chefia, coordenação e assessoria.
E esta situação se repete no Sistema Eletrobras, onde militares têm postos destacados em unidades como Eletrosul, Eletronorte, Eletronuclear, CHESF e Itaipu Binacional.
E o mesmo se deve dizer do Sistema Petrobras, que é dirigido por militares com presença na presidência e no conselho de administração da empresa, desde onde lideram a desmontagem da própria empresa.
A petrolífera brasileira vendeu a BR Distribuidora com seus postos de combustíveis, colocou à venda suas refinarias e passou a refinar menos diesel, gasolina e gás.
O mercado foi aberto para a importação desses derivados, e os importadores passaram a pressionar para que o preço no Brasil fosse equivalente ao preço no mercado internacional. Assim se adotou a chamada “política de preço de paridade de importação”, que trouxe enormes lucros e ganhos para os acionistas da Petrobras, mas vem prejudicando diretamente os cidadãos brasileiros.
Da mesma forma, no caso da energia elétrica, a elevação dos preços está primariamente relacionada a mudanças no regime hidrológico, mas no caso brasileiro atual ela está diretamente vinculada ao desgoverno do setor controlado por militares, mas carente de monitoramento, planejamento, coordenação e melhorias no Sistema Eletrobras, cujos investimentos sofreram redução significativa nos últimos anos.
Não há precedente, na experiência internacional, de um Estado que esteja se desfazendo de sua principal empresa de energia elétrica em meio a uma crise hidroenergética e num cenário de elevação na tarifa de luz.
Mas é isto que os militares brasileiros estão fazendo ou deixando que façam.
Praticando uma espécie de negacionismo energético que contraria toda sorte de fatos e dados, o Almirante Ministro das Minas e Energia afirmou que “a crise de energia nunca ocorreu”; manifestando total despreocupação com a soberania nacional, o oficial que preside o conselho de administração da Eletrobras reiterou que “o futuro da empresa é a privatização” (declaração à imprensa em 07/01/2021); e revelando integral descaso com a noção de cidadania, o General Presidente da Petrobras endossa que “a Petrobras não pode fazer política pública”.
A mesma incompetência se vê também em outras áreas do governo comandadas por militares, sejam eles velhos generais de pijama ou jovens oficiais que se especializaram rapidamente na compra e revenda de vacinas na área da saúde.
Fora da área econômica, há a administração militar verdadeiramente caótica na Ciência e Tecnologia e na questão ambiental amazônica, para não falar da situação esdrúxula de um Gabinete de Segurança Institucional que não conseguiu monitorar, e nem mesmo explicar – até hoje – o carregamento de cerca de 40 quilos de cocaína encontrado dentro de um avião da comitiva presidencial, em uma viagem internacional do próprio presidente.
O desempenho dos militares brasileiros e a volubilidade de suas concepções sobre o desenvolvimento nos trazem de volta à tese do historiador britânico Niall Ferguson.
Ele atribui a “incompetência universal” dos militares às próprias regras funcionais da carreira dos soldados, e é possível que ele tenha razão. Mas nossa hipótese extraída da experiência brasileira parte de outro ponto e vai numa direção um pouco diferente.
Do nosso ponto de vista, a incompetência governamental dos militares brasileiros começa por sua subserviência internacional a uma potência estrangeira, pelo menos desde a Segunda Guerra Mundial.
Uma falta de soberania externa que multiplica e agrava a fonte primordial da inabilidade e do despreparo do militar brasileiro para o exercício do governo em condições democráticas.
Sintetizando nosso argumento: a maior virtude dos militares é sua hierarquia, disciplina e sentido de obediência e, portanto, para um “bom soldado”, é falta grave ou mesmo traição qualquer questionamento das “ordens superiores”.
Como consequência, a “verdade” de todo soldado é definida pelo seu superior imediato, e assim sucessivamente, até o topo e ao fim da sua carreira.
Dentro das Forças Armadas, a “obediência cega” é considerada uma virtude e condição indispensável do sucesso na guerra ou em qualquer outra “situação binária” em que existam só duas alternativas: amigo ou inimigo, ou “azul” ou “vermelho”, como costumam se dividir os militares em seus “jogos de guerra”.
Não existe a possibilidade do “contraditório” nesse tipo de hierarquia, e é por isso que se pode dizer que a hierarquia militar é por definição antidemocrática.
Mais ainda, nesse tipo de hierarquia altamente verticalizada, como é o caso dos militares, a crítica, a mudança e o próprio exercício inteligente do pensamento são proibidos ou desestimulados, e é considerado uma falta muito grave.
Portanto, é a própria disciplina indispensável ao cumprimento das funções constitucionais das Forças Armadas, que os incapacita para o exercício eficiente de um governo democrático.
No caso brasileiro, este tipo de cabeça autoritária pôde conviver, durante o período da ditadura militar – entre 1964 e 1985 – com o projeto econômico do “desenvolvimentismo conservador”, porque não havia democracia nem liberdade de opinião, e porque as prioridades do projeto já estavam definidas de antemão desde a segunda revolução industrial.
A planilha era simples e ajustada para cabeças binárias: construir estradas, pontes, aeroportos e setores fundamentais para a industrialização do país.
Ao mesmo tempo, essa mentalidade binária e autoritária, e distante da sociedade e do povo brasileiro, contribuiu para a criação de uma das sociedades mais desiguais do planeta, devido a sua total cegueira social e política.
Depois da redemocratização, em 1985, essa mesma cabeça bitolada das novas gerações militares perdeu a capacidade de entender a complexidade brasileira e o lugar do país na nova ordem mundial multilateral do século XXI.
A Guerra Fria acabou, os EUA deixaram de apoiar políticas desenvolvimentistas, e tudo indica que a formação militar foi sequestrada pela visão neoliberal.
Como resultado, os militares brasileiros ainda não conseguiram se desfazer de sua visão anticomunista do período pós-guerra, volta e meia confundem a Rússia com a União Soviética, e ainda somam a isto uma nova visão binária, oriunda dos manuais de economia ortodoxa e fiscalista, em que o próprio Estado é tratado como grande inimigo.
Resumindo nosso ponto de vista: a geração dos militares “desenvolvimentistas” brasileiros do século XX foi “vassala” com relação aos EUA, tinha uma visão apenas territorial do Estado e da segurança nacional, e possuía uma visão policialesca da sociedade e da cidadania, mas apoiou uma estratégia de investimentos que favoreceu a industrialização da economia até os anos 1980.
Já a nova geração de militares “neoliberais” do século XXI aprofundou sua vassalagem americana, trocou o Estado pelo mercado, seguiu atropelando a democracia e os direitos sociais dos cidadãos brasileiros.
Neste ponto, podemos voltar à tese inicial de Niall Ferguson, para complementá-la ou desenvolvê-la, porque no caso de uma “corporação militar vassala”, e em um país periférico como o Brasil, a incompetência militar se vê agravada pela sua submissão à estratégia militar e internacional de outro país.
Não se pode governar um país quando não se tem autonomia para definir quais são seus próprios objetivos estratégicos, e quais são seus aliados, competidores e adversários.
Não se pode governar um país quando não se aceita o contraditório e se trata como inimigos todos os que divergem de suas opiniões.
Não se pode governar um país quando se tem medo ou está proibido de pensar com a própria cabeça.
Não se pode governar um país enquanto se olha para seus cidadãos como se fossem seus subordinados.
Não se pode governar um país enquanto não se compreender que a obrigação fundamental do Estado e o compromisso básico de qualquer governo é com a vida e com os direitos à saúde, ao emprego, à educação, à proteção e ao desenvolvimento material e intelectual de todos os seus cidadãos, independentemente de sua classe, raça, gênero, religião ou ideologia, sejam eles seus amigos ou inimigos.
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*José Luís Fiori é professor titular do Programa Professor permanente do programa de pós-graduação em Economia Política Internacional (PEPI/IE/UFRJ), coordenador do Laboratório de Ética e Poder Global (UFRJ), pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP)
*William Nozaki é professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), coordenador técnico do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP)