por Caio Almendra, editor de Opinião do Intercept Brasil
-------------
Da Aldeia Mar’akanà à Gaza, indústria bélica protege quem lucra com a
exclusão. Mas esse sistema está ameaçado.
A bem da transparência, vale começar dizendo que o autor deste texto, que abordará
como a violência e a repressão em Israel se espalham pelo mundo, não é totalmente
isento.
Eu militei pela concessão definitiva da Aldeia Mar'akanà aos indígenas. A ideia era
transformar aquele espaço em uma universidade indígena, um espaço de encontro
entre diferentes povos e de troca de conhecimento.
E em 22 de março de 2013, durante a remoção da Aldeia, eu fui acertado por uma
arma sônica para contenção de protestos. O equipamento havia sido comprado meses
antes pelo governo do Rio de Janeiro de uma fabricante israelense.
O exato efeito da arma perdeu-se na memória: lembro de dor no ouvido, tontura e cair
no chão. E, até por isso, o que me motiva não é a raiva por esse episódio, mas uma
apreensão sobre esse fenômeno de intercâmbio da repressão a minorias e estudantes.
Há sete meses que observamos, atônitos e impotentes, um genocídio. A munição
israelense, em especial para bombardeios, acabou no segundo mês, mas em
dezembro a cooperação militar entre EUA e Israel garantiu que o massacre nunca
parasse. Hoje, já são mais de 40 mil mortos palestinos.
Nesse cenário, estudantes de universidades de elite dos EUA começaram uma
sequência de protestos e ocupações contra o genocídio.
Uma das primeiras foi a Universidade de Columbia em Nova York. E vale um olhar
atento a ela.
Nos EUA, o ensino superior não é gratuito. Em especial, universidades de elite são
caríssimas e as dívidas dos estudantes são um problema social grave. Para piorar, os
custos das mensalidades não param de crescer. Ainda assim, grande parte das
universidades de elite vive de doações de ex-alunos milionários e bilionários.
Uma das principais reivindicações dos estudantes de Columbia era que o fundo de
investimento parasse de investir em Israel, empresas bélicas e empresas que se
beneficiam da ocupação israelense sobre territórios palestinos.
Havia algo mais nesses investimentos que incomodava os alunos: a especulação
imobiliária. Foi o que ouvi de uma entrevista de Basil Rodriguez, sobrinha de Shireen
Abu Akleh, jornalista estadunidense-palestina assassinada pelas forças de defesa
israelenses em 11 de maio de 2022, e liderança estudantil em Columbia.
Columbia é hoje a maior proprietária de imóveis da cidade de Nova York, com 216
prédios que totalizam 1,3 milhão de metros quadrados. A segunda maior proprietária
de imóveis da cidade é a New York University, com aproximadamente a metade de
metros quadrados, e que também foi ocupada por estudantes. Parte disso se explica
por um benefício tributário: universidades são isentas de imposto predial por lá.
Porém, Rodriguez observou uma continuidade lógica e histórica que acho importante
ressaltar.
Fundos imobiliários têm maior lucro quando iniciam processos de gentrificação de
bairros. Na definição do Brasil Escola, a “gentrificação é um processo de transformação
de áreas urbanas que leva ao encarecimento do custo de vida e aprofunda a
segregação socioespacial nas cidades”. Em especial, a gentrificação costuma ter claro
caráter racista e cultural, destruindo bairros populares e expulsando minorias étnicas
que lá viviam para construir bairros de classe média ou ricos.
No centro da guerra à Gaza também há a questão da terra. Novos assentamentos
israelenses na Cisjordânia e na Jerusalém Oriental são construídos a partir da expulsão
de palestinos, um processo de colonialismo continuado. Sai uma minoria étnica vivendo
com Índice de Desenvolvimento Humano, o IDH, na casa dos 700 , similar ao de
Botsuana, e entra uma maioria étnica, vivendo com IDH superior a 900, comparável
com o do Japão.
Durante as lutas pela independência de países da África no século, o poeta e autor
martinicano Aimé Césaire afirmou que a violência empregada no regime colonial se
voltaria para a metrópole.
Acontece que a violência de estado carece de uma imensa estrutura. É preciso ter
armas, soldados, pesquisas militares. É preciso ter propaganda, relações diplomáticas,
lobby. Tudo isso custa caro e, portanto, a guerra faz girar um imenso ecossistema
econômico.
Ora, se Cesáire estava correto sobre a violência, nada mais natural que essa
infraestrutura econômica também retorne à metrópole.
Ao longo da semana, observamos as ocupações serem duramente reprimidas pelas
polícias dos EUA. Em Nova York, a polícia retirou os ocupantes de Columbia no dia 30
de Abril.
Imagens de carros blindados entrando em gramados cheios de barracas de estudantes
e policiais fortemente armados espancando estudantes e professores encheram as
redes sociais. Numa aliança grotesca entre polícia e imprensa conservadora,
estudantes eram virados à força para as câmeras da Fox News e suas imagens
divulgadas nacionalmente, enquanto pessoas ameaçavam incluí-los em listas de
banimentos para atrapalhá-los a conseguir empregos pelo resto da vida.
Não é de espantar que essa mesma polícia de Nova York gaste uma parte de
seu orçamento de 5,8 bilhões de dólares anuais mantendo um escritório em Tel-Aviv.
O escritório foi inaugurado em 2012, com o objetivo expresso de ajudar na identificação
de potenciais riscos terroristas que tivessem Nova York como alvo.
Mas é também um espaço de intercâmbio de armas e equipamentos, um
showroom/vitrine permanente para a indústria bélica de Israel. E, como denunciou a Al
Jazeera em Novembro de 2023, o grande segredo dessa indústria de armas é que elas
são testadas por Israel em palestinos.
Isso para não entrar no assunto do uso e abuso de inteligência artificial para
identificação de alvos em Gaza, assunto no podcast Medo e Delírio em Brasília, e que
hoje é o sonho de consumo de polícias mundo afora.
Seria impossível encerrar esse texto com uma mensagem otimista. Há profundas e
permanentes ligações entre uma economia que lucra com a exclusão das minorias de
suas terras (quer os indígenas da Aldeia Mar'akanà, os palestinos da Jerusalém
Oriental, Gaza e Cisjordânia, quer negros, latinos e demais minorias sociais de Nova
York) e a indústria bélica, que providencia as armas para tal.
Acontece que quando há uma demonstração tão descomunal de força para retirar
estudantes franzinos de suas barracas e assassinar crianças em Gaza, podemos
lembrar que toda covardia dá testemunho do medo. Algo naqueles jovens em barracas
deixou toda essa bilionária estrutura com medo.