O MERGULHO

por Edilson Martins -------------------- Duas décadas se encontravam. Os anos 60 se despediam, com sua tragicidade - guerra fria, corrida à Lua, golpes de 64, 68, os jovens decidindo que é proibido proibir - e começavam os anos 70, plenos de expectativa. Todos sonhavam que Guevara não morrera em vão. O perverso da vida é que quanto maior a expectativa, mais profunda e desconcertante a decepção. No Brasil a tortura comendo solta, e não menos os assassinatos nos porões da ditadura. O país vivia a paz dos cemitérios. Os índios Waimiri/Atroari, no Amazonas, continuavam resistindo contra as tropas do Exército, recusando a passagem de uma rodovia - BR-174 - em suas terras. Lá me vou, sob a paranoia das memórias ainda vivas da prisão, das torturas, conhecer o Xingu, partindo da Sucursal do JB em São Paulo. Melhor, tentar fazer a narrativa do extermínio final dos povos indígenas que sobraram. Do Cláudio já sabia muito - Villas Boas - sua obsessão pelos livros, pela filosofia, e sua paixão fundamentalista pelos índios que o seu estado - São Paulo - exterminara, preara, traficara, em passado recente. De cara, firmei amizade com um pequeno e astuto indiozinho trumai, sem que entendesse uma palavra de sua língua, e o mesmo acontecendo com ele em relação ao meu verbo. E, no entanto, quando o vi mergulhar nas águas cor de vinho do Xingu, do imenso, assustador e belo Xingu, ao tempo em que a região era de verdade um paraíso perdido, saltando de peito aberto, de frente, sem temer, sem proteger nada, sem se benzer, abrindo os bracinhos para a imensidão das correntezas, entregando-se como nenhuma outra criança civilizada seria capaz, dizendo aos meus olhos que aquele mergulho representava um outro mundo, uma outra civilização, quase um outro planeta, disse comigo, por aqui foi ficar, por aqui vou me demorar. E lá se passaram, foram vividos, 54 anos. ------------------ foto - 1971 - edilson martins ------------ https://linktr.ee/edilsonmartins