Área das crianças mortas”: cirurgiões americanos retornam de Gaza e não conseguem esquecer o pesadelo
Uma bala removida do corpo de um homem em Deir al-Balah, centro de Gaza, há um ano. (Crédito: Cortesia de Mark Perlmutter).
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Feroze Sidhwa e Mark Perlmutter dizem que os hospitais americanos ficariam sobrecarregados com o tipo de sofrimento que testemunharam em Gaza.
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Por Nir Hasson*------
O pronto-socorro do Hospital Nasser, no sul da Faixa de Gaza, possui uma área especial onde crianças podem morrer tranquilamente na presença de suas famílias. Conhecida como “área das crianças mortas”, ela também é destinada a crianças cujo resgate exigiria recursos além das possibilidades do hospital.
Na noite de 18 de março, quando Israel violou o cessar-fogo e retomou a guerra em Gaza, o Dr. Feroze Sidhwa enviou duas meninas para essa área.
Sidhwa, que mora nos Estados Unidos, chegou à Faixa de Gaza no início de março para se voluntariar pela segunda vez. Naquela noite, ele dormiu na sala dos médicos, no quarto andar do hospital. Às 2h da manhã, a porta foi violentamente arrombada por um ataque aéreo próximo.
“Acordamos e por um minuto ficamos ali sentados. … Depois que as bombas explodiram por uns cinco ou seis minutos, dissemos que era melhor irmos para o pronto-socorro”, conta ele.
No último ano e meio, a equipe do Hospital Nasser, em Khan Yunis, se acostumou a eventos com grande número de vítimas. De acordo com o protocolo, um jovem médico palestino está de plantão na entrada do hospital.
Dr. Feroze Sidhwa no Hospital Nasser em Khan Yunis no mês passado. A equipe de lá se acostumou a eventos com grande número de vítimas. (Crédito: Cortesia de Feroze Sidhwa)
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“O trabalho dessa pessoa é mandá-los direto para o necrotério”, diz Sidhwa. “As famílias vão querer que alguém seja avaliado mesmo que a cabeça seja decepada. Mas é muito, muito difícil fazer isso com crianças, especialmente crianças pequenas, como de 3, 4 ou 5 anos. É muito difícil mandá-las diretamente para o necrotério.”
Após o ataque às 2 da manhã, Sidhwa conta que “nos primeiros 10 ou 15 minutos, tudo o que fizemos foi declarar crianças pequenas mortas porque… em um evento com grande número de vítimas, é preciso priorizar as pessoas com maior probabilidade de sobreviver.”
Sidhwa admite que declarou as duas meninas mortas precocemente. Dadas as condições do hospital, não havia chance de salvá-las.
“Ambas tinham lesões cerebrais terríveis. … Então, eu tive que contar às famílias delas, simplesmente pegá-las no colo e dizer: ‘Sabem, elas vão morrer, não há nada que eu possa fazer a respeito.'”
Sidhwa diz que a equipe do hospital preparou esta área “porque eles têm muita experiência e sabiam que esse cenário aconteceria”. A prioridade deve ser dada àqueles que podem sobreviver.
Tudo o que os EUA e Israel estão fazendo em Gaza é feito sob medida especificamente para minar a saúde humana. Obrigando as pessoas a viverem ao relento, impedindo-as de comer. (Dr. Feroze Sidhwa)
“A primeira criança que vi foi uma menina de cerca de 3 anos com estilhaços por todo o rosto, na nuca, em todo lugar”, diz ele, acrescentando que parte do cérebro dela estava exposta e um dos olhos totalmente destruído.
Vários fatores tiveram que ser levados em consideração, incluindo o fato de que o hospital não tinha neurocirurgião. “O único neurocirurgião no sul de Gaza está no Hospital Europeu. Então, mesmo que pudéssemos tê-la salvado com intervenção neurocirúrgica, não tínhamos isso, então não havia nada que pudéssemos fazer lá”, diz Sidhwa.
“A segunda coisa é que eu poderia ter colocado um tubo de respiração na garganta dela, poderia ter usado o ventilador para respirar por ela e poderia ter administrado soro intravenoso. Eu poderia ter colocado um soro intravenoso nela e tudo isso provavelmente a teria mantido viva por 24 a 48 horas enquanto seu cérebro morria. Uma vez que seu cérebro morresse… seu coração teria parado nos dias seguintes.”
“Se eu fizer isso, estarei gastando tipo uma hora salvando alguém que eu sei que vai morrer de qualquer maneira e não estarei fazendo nada para salvar outra pessoa.”
“Então, peguei essa menina, entreguei-a ao cara que estava com ela e disse: ‘Olha, ela vai morrer. Leve-a para a área de cuidados infantis.'”
A segunda menina, de 5 anos, também sofreu uma lesão cerebral por estilhaços. Ela também foi entregue aos pais em seus momentos finais.
Naquela época, outro médico americano, o Dr. Mark Perlmutter, era voluntário na Faixa de Gaza. Ele trabalhava no pequeno Hospital Shuhada al-Aqsa, em Deir al-Balah, no centro de Gaza.
Ele afirma que, em eventos com grande número de vítimas, “há sangue por toda parte. O chão fica coberto de sangue. Seus pés escorregam no sangue. Uma pessoa pode estar espirrando sangue em outra ao lado”.
De acordo com Perlmutter, muitos feridos precisam de amputações para salvar suas vidas. Às vezes, chegam com torniquetes nos quatro membros ou com um ferimento aberto na cabeça expondo o cérebro.
Perlmutter mora perto de Raleigh, Carolina do Norte, na constelação da Universidade Duke, da Universidade da Carolina do Norte e da WakeMed – três hospitais universitários diferentes e ainda mais centros de trauma, que, segundo ele, ficariam paralisados pela situação que testemunhou em Gaza.
Perlmutter enviou ao Haaretz dezenas de fotos que tirou em Gaza. Pouquíssimas podem ser publicadas. Elas mostram crianças com membros mutilados ou decepados, crianças mortas, pisos cobertos de sangue e partes de corpos, uma mesa empilhada com pequenos corpos e metade de um corpo deitado na rua.
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Um desastre como nenhum outro
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Sidhwa, cirurgião geral e de traumatologia na Califórnia, é filho de pais paquistaneses, membros da minoria zoroastriana do Paquistão. Perlmutter, cirurgião ortopédico, é filho de pai judeu e mãe católica.
Ambos têm uma longa história de trabalho voluntário após desastres; Perlmutter tratou vítimas após o 11 de setembro, o furacão Katrina e o terremoto de 2010 no Haiti, para citar apenas alguns. Sidhwa prestou assistência após o atentado à Maratona de Boston em 2013 e no Haiti, Zimbábue, Burkina Faso e três vezes na Ucrânia, com sua passagem mais recente em outubro de 2023.
Ambos estão de volta aos Estados Unidos. Em entrevistas por Zoom, eles concordaram que o desastre em Gaza não pode ser comparado a nenhuma catástrofe natural ou provocada pelo homem das últimas décadas.
O Hamas existe como um braço militar porque os palestinos não têm liberdade, diz Permutter, acrescentando que os moradores de Gaza que ele conheceu não odeiam os judeus. Sidhwa acrescenta: “Na verdade, parar a guerra em Gaza é a única maneira de Israel sobreviver, pelo menos de uma forma reconhecível.”
Passávamos por cima de crianças – e eu sabia que poderia salvá-las nos Estados Unidos – só para procurar uma criança que tivesse mais chances de sobreviver. (Dr. Mark Perlmutter)
Permutter: “E se Israel não quer que as pessoas se revoltem contra a vida em um estado ocupado, então dê a elas a liberdade e o Hamas desaparecerá. E há provas disso. … Veja a Irlanda. O país que mais protesta contra o comportamento de Israel, com exceção da África do Sul, é a Irlanda. … Vinte anos atrás, havia um grupo militante chamado Sinn Fein. E o Sinn Fein hoje é uma potência política na Irlanda.”
Em outubro, Sidhwa e Perlmutter assinaram uma carta ao então presidente dos EUA, Joe Biden, exigindo a cessação das transferências de armas para Israel. A carta incluía acusações severas contra o exército israelense, incluindo o assassinato de crianças palestinas.
Sidhwa reiterou essas alegações em um artigo de opinião no New York Times baseado em radiografias de crianças feridas por balas de atiradores de elite. Quando alguns leitores questionaram as alegações e as imagens, o jornal investigou com a ajuda de especialistas independentes.
“Apoiamos este ensaio e a pesquisa que o sustenta”, escreveu a editora de opinião do The Times, Kathleen Kingsbury, em resposta. “Qualquer insinuação de que suas imagens são fabricadas é simplesmente falsa.”
Sidhwa e Perlmutter também se voluntariaram em Gaza há um ano. “Quando entramos em Gaza, sentimos o cheiro de enxofre de corpos em decomposição, o enxofre de esgoto e o enxofre de pólvora. … Isso deu o tom para o que começamos a ver imediatamente quando chegamos lá”, diz Perlmutter sobre sua primeira visita.
“Em poucas horas, ocorreu nosso primeiro evento com vítimas em massa. E quando digo evento com vítimas em massa, quero dizer que chegaram pessoas tão destroçadas que sobrecarregariam os centros de trauma de qualquer grande cidade.”
Ele conta que, em sua primeira semana lá, realizou mais cirurgias de implantes metálicos do que em seus 20 anos anteriores como cirurgião.
Durante sua primeira visita a Gaza, Sidhwa se voluntariou no Hospital Europeu de Khan Yunis, que estava lotado. Centenas de palestinos deslocados se refugiaram lá, enquanto milhares acamparam ao redor, esperando que o exército israelense não atacasse a instalação.
As condições sanitárias eram horríveis. “Naquele período, perdi 6,8 quilos”, diz Sidhwa. “Tive diarreia e tosse o tempo todo, assim como literalmente todas as pessoas com quem estive.”
Ambos os médicos concordam que a saúde dos moradores de Gaza piorou significativamente durante a segunda visita. “Tudo o que os EUA e Israel estão fazendo em Gaza é feito sob medida para minar a saúde humana”, diz Sidhwa.
“Obrigar as pessoas a viverem ao relento, proibir as pessoas de comer, destruir o sistema de produção de alimentos de Gaza… [e] as coisas que as sociedades valorizam, como moradia e educação. Tudo isso melhora a saúde humana. E quando você tira tudo isso, as pessoas ficam realmente doentes.”
“Praticamente todos em Gaza estão desabrigados. … E nos EUA, podemos mostrar facilmente que o simples fato de estar desabrigado já cria uma série de problemas para você.”
Perlmutter acrescenta: “Quando caminhei entre o Nasser e o Amal [Hospital], só para ver como era, não havia literalmente um prédio intacto. … Talvez um quarto ou um terço dos prédios estivessem completamente destruídos, completamente desabados ou tão danificados que só um maluco tentaria entrar. Acho que não vi um prédio com as quatro paredes intactas.”
Além disso, há a escassez de alimentos. Sidhwa e Perlmutter dizem que toda a população de Gaza sofre de uma grave deficiência de vitaminas e proteínas.
“Comi carne uma vez no dia 6 de março, o dia em que cheguei lá”, diz Sidhwa. “E depois comemos frango – acho que foi no dia 25 ou 26 de março. Nesse meio tempo, comi literalmente arroz.
Perlmutter acrescenta: “Uma lata de atum é o salário de uma semana, certo? Um tomate. Dois tomates são o salário de um dia. Quatro beterrabas são o salário de um dia. Havia pão pita e homus.”
Os dois dizem que o Hospital Nasser – atualmente o maior hospital em funcionamento em Gaza – é significativamente mais bem equipado do que o Shuhada al-Aqsa. Perlmutter diz que o Shuhada sofre constantemente com falta de equipamentos, medicamentos e outros suprimentos essenciais.
“Eu levava sabonete para lavar o corpo e o cabelo — um sabonetezinho de hotel”, conta ele. “Usava para lavar as extremidades dos meus pacientes. Usei meu próprio enxaguante bucal para desinfetar uma ferida antes de fazer uma incisão.”
“E não há antibióticos nem analgésicos. Nenhum analgésico. Imagina perder três membros e acordar da anestesia sem analgésicos? … Pessoas gritando o dia todo?”
Em um caso, Perlmutter foi forçado a deixar uma broca cirúrgica dentro da perna de um paciente porque havia ficado sem os parafusos para fixar o osso.
Sidhwa também relata escassez de medicamentos, bolsas de sangue e equipamentos, embora não dos suprimentos essenciais necessários para o atendimento de traumas. Durante suas duas primeiras semanas em Gaza, antes do recomeço dos combates, ele tratou principalmente de pessoas feridas em desabamentos de prédios; muitas vezes, elas tentavam recuperar corpos dos escombros.
Além disso, havia os ferimentos à bala causados por brigas familiares – evidência do colapso da sociedade em Gaza. E cerca de uma vez por dia, alguém chegava com um tipo diferente de ferimento à bala, supostamente causado por um atirador israelense em uma torre no corredor Filadélfia, na fronteira sul de Gaza.
De 18 de março até sua partida de Gaza, Sidhwa e Perlmutter cancelaram todas as cirurgias programadas e se concentraram exclusivamente em salvar os palestinos feridos nos bombardeios. Eles dizem que, quando uma bomba atinge a casa de uma família deslocada, dezenas de feridos podem chegar ao pronto-socorro em menos de uma hora. As salas de cirurgia não conseguem dar conta do recado e muitos morrem na sala de emergência ou nos corredores.
“Muitas das pessoas que esperavam para entrar na sala de cirurgia morreram antes de chegar. Passávamos por cima de corpos, até de crianças”, diz Perlmutter. “Passávamos por cima de crianças – e eu sabia que poderia salvá-las nos Estados Unidos – só para procurar uma criança com mais chances de sobreviver”, acrescenta, com a voz embargada enquanto chora.
“Tenho pesadelos todas as noites. Começou com crianças me estendendo a mão, dizendo que eu estava passando por cima de outra criança que poderia sobreviver. Estendendo a mão e puxando a perna da minha calça, pedindo em inglês: ‘Por favor, não passe por cima de mim, por favor, me ajude’. Outros me disseram para ajudar a irmã ao lado deles.”
Os dois médicos dizem que, como em suas visitas anteriores a Gaza, muitos dos mortos e feridos em ataques israelenses são crianças. “De 70 pessoas a cada hora”, diz Perlmutter, “40 serão crianças.”
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* Reportagem publicada no jornal “israelense” Haaretz em 11/04/2025.