A LONGA NOITE LIBERAL DA ARGENTINA

Via Alberto Carvalho ---------------- A crise atual na Argentina não surgiu do nada - nem é apenas fruto da excentricidade ideológica de Javier Milei. É antes o último capítulo de uma longa história de experimentações liberais, quase sempre impostas com promessas de crescimento e modernidade, e invariavelmente terminadas em colapsos sociais de grande escala. Desde a ditadura militar nos anos 1970, com José Alfredo Martínez de Hoz, passando pelo ciclo de privatizações e dolarização dos anos 1990 sob Carlos Menem e Domingo Cavallo, até à bancarrota de 2001, a Argentina foi repetidamente submetida a uma lógica económica liberal que, em vez de a erguer, a afundou. Os ingredientes são conhecidos: privatizações selvagens, cortes drásticos na despesa pública, abertura irrestrita aos mercados financeiros, ataque aos direitos laborais, submissão ao FMI e concentração brutal da riqueza. O resultado também: crescimento efémero seguido de recessão, dívida externa insustentável, desemprego em massa e pobreza generalizada. Hoje, com Milei, o guião repete-se - mas com uma radicalização ainda mais impiedosa e uma velocidade letal. O país volta a ser cobaia de um fundamentalismo liberal que despreza a realidade humana. Para alcançar um superavit de apenas 0,3% do PIB, Milei desencadeou uma operação de amputação social e económica sem precedentes. Os números que entusiasmaram os liberais europeus - incluindo a Iniciativa Liberal em Portugal - foram comprados com sofrimento humano: Despesa pública reduzida em 35% em termos reais. Um corte histórico, cego, que travou a máquina do Estado. Corte de 45,6% nos apoios sociais, deixando milhões sem proteção mínima. Demissão de 36 mil funcionários públicos, entre os quais médicos, professores e técnicos essenciais. Suspensão de 76,8% das obras públicas, parando hospitais, escolas, estradas, infraestruturas básicas. Congelamento de salários e pensões, em plena inflação. A palavra “ajuste” é eufemismo. O que se passou foi um desmantelamento deliberado do Estado. Um país inteiro sacrificado em nome de um ideal financeiro abstracto. Enquanto os economistas celebram o “rigor”, a realidade nas ruas é de miséria. As estatísticas mais recentes são devastadoras: 52,9% da população vive abaixo da linha da pobreza. Mais de 24 milhões de argentinos sem condições mínimas. 17,5% em indigência absoluta. Famílias sem acesso regular a comida, água, medicamentos. Consumo popular caiu 20% em poucos meses. O mercado interno morreu. Desemprego e economia informal a crescer, sobretudo entre jovens e mulheres. Dois milhões de crianças em risco alimentar grave, segundo organizações humanitárias. As escolas reduzem refeições. Os hospitais não conseguem pagar luz ou medicamentos. As universidades cortam turmas. As pessoas vivem entre o desalento e a sobrevivência. E tudo isto, para que um número apareça positivo numa folha de Excel. O que há de novo no caso de Milei é o grau de fanatismo doutrinário. Ele não governa para melhorar a vida de ninguém. Governa para destruir o Estado como ideia - para transformar a Argentina numa zona franca para os mercados e numa zona de sacrifício para os pobres. A reforma migratória propõe cobrar pela saúde e pela educação pública aos estrangeiros. A política habitacional foi entregue ao mercado, sem travões à especulação. O fim dos subsídios aos transportes e à energia fez disparar os preços básicos. A liberdade que se apregoa é a dos mais fortes, dos mais ricos, dos que sempre ganham. Para todos os outros, resta a sobrevivência, o desamparo, o desespero. O Estado deixou de ser garantia de direitos para se tornar um ausente impiedoso. Em Portugal, vozes liberais como a Iniciativa Liberal citam a Argentina de Milei como “modelo de coragem”. Falam em “superavit”, em “ajuste”, em “eficiência”. Mas omitem - com calculada frieza - que esse equilíbrio orçamental foi pago com a fome de milhões, com o abandono dos mais frágeis, com a implosão do tecido social. Eis a verdade: não há liberdade onde há fome. Não há dignidade quando se governa com base na exclusão. A Argentina está a viver o pesadelo de um projeto liberal sem alma, sem ética e sem compaixão. Um projeto que já fracassou várias vezes e que, mesmo assim, continua a ser exportado como se fosse uma promessa. Mas a Argentina é hoje o espelho do que acontece quando a economia é colocada acima da vida - e o mercado acima da justiça. Quem quiser ver o futuro que o liberalismo radical oferece, olhe bem para Buenos Aires. E depois diga, com coragem, se é isso que quer para Portugal. ----------------- AC