O número de mortos em Gaza, conforme relatado pelo Ministério da Saúde palestino, subestima a verdadeira escala da crise, afirmam pesquisadores.
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Foto acima:Enterro em vala comum em Khan Younis, novembro de 2023. O economista Michael Spagat especula que uma das razões para as discrepâncias na contagem de mortes é que algumas "famílias simplesmente enterraram seus entes queridos sem relatar suas mortes". (Crédito: Mohammed Dahman / AP)
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Por Nir Hasson*
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Segunda-feira da semana passada, o Ministério da Saúde na Faixa de Gaza publicou uma lista atualizada das vítimas da guerra: um documento em árabe de 1.227 páginas, organizado dos mais jovens aos mais velhos. A lista inclui o nome completo da pessoa falecida, o nome do pai e do avô, data de nascimento e número de identificação.
Diferente de listas anteriores, esta especifica a idade exata das crianças com menos de um ano quando foram mortas. Mahmoud al-Maranakh e outras sete crianças morreram no mesmo dia em que nasceram. Outras quatro foram mortas no dia seguinte ao nascimento, e cinco viveram por dois dias. Só na página 11, após 486 nomes, aparece a primeira criança que tinha mais de seis meses de idade ao ser morta.
Os nomes das crianças menores de 18 anos ocupam 381 páginas e somam 17.121. Do total de 55.202 mortos, 9.126 eram mulheres.
Porta-vozes, jornalistas e influenciadores israelenses rejeitam com veemência os dados do Ministério da Saúde palestino, alegando que são inflados. No entanto, cada vez mais especialistas internacionais afirmam que essa lista — apesar de todo o horror que representa — é confiável e talvez até conservadora em relação à realidade.
O professor Michael Spagat, economista do Holloway College da Universidade de Londres e especialista mundial em mortalidade em conflitos violentos, publicou com uma equipe de pesquisadores o estudo mais abrangente até hoje sobre mortalidade na Faixa de Gaza. Com apoio do cientista político palestino Dr. Khalil Shikaki, o grupo entrevistou 2.000 domicílios em Gaza, totalizando quase 10 mil pessoas. Concluíram que, até janeiro de 2025, cerca de 75.200 pessoas morreram de forma violenta em Gaza durante a guerra, a maioria por munições israelenses.
Naquela época, o Ministério da Saúde de Gaza contabilizava 45.660 mortos desde o início da guerra — ou seja, os dados oficiais subestimavam em cerca de 40% o total real.
O estudo, ainda não revisado por pares (publicado como preprint), apresenta resultados semelhantes aos de uma pesquisa da London School of Hygiene and Tropical Medicine, que também estimou uma subcontagem de cerca de 40%.
Outro relatório, divulgado esta semana por Matthew Ghobrial Cockerill, doutorando em história na London School of Economics, feito para a organização Action on Armed Violence, também apresenta números superiores aos do Ministério da Saúde em Gaza. Cockerill e sua equipe examinaram os nomes de mil crianças entre três mil que o ministério havia apagado de suas listas, e concluíram que há fortes evidências de que a maioria dessas crianças realmente morreu.
O estudo de Spagat também tenta, pela primeira vez, responder à questão da mortalidade excedente — mortes causadas indiretamente pela guerra: fome, frio, doenças sem tratamento devido ao colapso do sistema de saúde, entre outros fatores.
Durante o primeiro ano do conflito, várias estimativas sobre mortalidade excedente foram publicadas, muitas das quais exageradas. Segundo a nova pesquisa, o número real de mortes indiretas até janeiro foi de 8.540. Um número enorme, mas menor do que as previsões de dezenas de milhares de mortes por fome e doenças.
Especialistas entrevistados pelo Haaretz explicam que, antes da guerra, a saúde da população de Gaza e o sistema de saúde eram relativamente bons, especialmente em comparação com zonas de conflito crônico como na África ou Iêmen. A taxa de vacinação, por exemplo, era alta graças ao trabalho da UNRWA, a agência da ONU para refugiados.
Outro fator apontado é a estrutura social de Gaza: redes familiares e comunitárias que ajudaram a evitar mortes em massa. Spagat também destaca o papel crucial da ONU e outras organizações humanitárias nos primeiros meses da guerra.
No entanto, todas essas defesas deixaram de ser eficazes no último semestre. O deslocamento de 90% da população da Faixa e o colapso do sistema de saúde causaram queda na taxa de vacinação. Além disso, as condições nos acampamentos — frio, calor, superlotação, doenças — aumentaram a vulnerabilidade.
A escassez de alimentos e o enfraquecimento das operações da ONU, após o cerco total de 78 dias (de 2 de março a 19 de maio) e o cerco parcial que continua desde então, têm causado deficiências nutricionais graves. A destruição contínua dos hospitais e da infraestrutura médica se intensificou com a retomada das hostilidades.
A conclusão é que Gaza provavelmente enfrentará novas ondas de mortalidade excedente. “Acredito que a proporção de mortes indiretas em relação às mortes violentas aumentou desde [o estudo de janeiro]”, diz Spagat.
Mesmo sem considerar novas ondas de mortes indiretas, a combinação de mortes violentas e por doenças/fome resultou na morte de 83.740 pessoas até janeiro. Desde então, mais de 10.000 foram mortas, segundo o Ministério da Saúde de Gaza, sem contar as mortes indiretas. Ou seja, mesmo que ainda não tenha sido ultrapassada a marca de 100.000 mortos, estamos muito próximos disso.
Esses dados, afirma Spagat, colocam a guerra de Gaza como um dos conflitos mais sangrentos do século XXI. Embora o número absoluto de mortos seja maior na Síria, Ucrânia e Sudão, Gaza parece liderar na proporção entre civis e combatentes mortos e na taxa de mortes por população.
Segundo os dados do estudo, alinhados com os do Ministério da Saúde palestino, 56% dos mortos são mulheres ou crianças de até 18 anos — um índice excepcional em comparação com quase todos os conflitos desde a Segunda Guerra Mundial.
Dados reunidos por Spagat indicam que a proporção de mulheres e crianças mortas violentamente em Gaza é mais que o dobro da registrada em outros conflitos recentes: Kosovo (20%), Etiópia (9%), Síria (20%), Colômbia (21%), Iraque (17%) e Sudão (23%).
Outro dado extremo é o percentual de mortos em relação à população: “Provavelmente estamos falando de cerca de 4% da população morta”, afirma Spagat. “Não sei se há outro caso no século XXI que tenha chegado a esse nível.”
“Devo verificar os novos dados do Sudão, e há controvérsias sobre a República Democrática do Congo. Mas estamos na liga da África, não do Oriente Médio.” E isso, conclui ele, “não é boa companhia”.
Apesar disso, Spagat evita usar o termo “genocídio”, adotado por muitos pesquisadores de conflitos ao descrever Gaza. “Acho que esse estudo não pode dar um veredicto [sobre isso]”, diz. Seria necessário provar a intenção de Israel de cometer genocídio. “Mas acho que a África do Sul apresentou um caso bastante forte” na Corte Internacional de Justiça.
O melhor cenário, segundo ele, é que o que está ocorrendo em Gaza seja “apenas” limpeza étnica.
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Silêncio oficial
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Em contraste com a abundância de dados das listas ministeriais e dos estudos independentes que validam os números do Ministério da Saúde de Gaza, o silêncio dos porta-vozes israelenses sobre o número de civis mortos é marcante. Esta é a primeira guerra em que as Forças de Defesa de Israel não divulgam estimativas de civis inimigos mortos.
O único número repetido por autoridades israelenses é o de 20.000 “terroristas” do Hamas e de outras facções mortos — número sem listas de nomes ou comprovação.
Spagat afirma que sua equipe tentou contabilizar os nomes de combatentes divulgados por Israel, mas chegaram a apenas algumas centenas. É difícil compilar uma lista com mil nomes, afirma.
Cockerill também considera o número inverossímil. “Com base em um padrão histórico muito consistente, sabemos que, em geral, ao menos o dobro de combatentes é ferido em relação aos mortos. Se Israel afirma ter matado 20 mil, teríamos que assumir que 40 mil foram feridos — e não faz sentido dizer que o Hamas tinha 60 mil militantes.”
Cockerill diz que Israel “manipula o número de combatentes” de duas formas principais: ao redefinir como combatentes civis que trabalham no governo, e ao considerar qualquer pessoa morta em “zonas de morte” como combatente.
Mesmo aceitando os números oficiais, a proporção continua sendo de quatro civis mortos para cada militante do Hamas — muito distante da proporção de 1:1 que Israel alega.
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Onde estão os corpos?
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Se os números de mortos forem mesmo muito maiores que os informados pelo Ministério da Saúde, onde estão os corpos? Os registros ministeriais se baseiam principalmente em corpos levados aos necrotérios hospitalares.
Spagat e outros pesquisadores acreditam que milhares de pessoas ainda estão sob os escombros de dezenas de milhares de prédios destruídos, e por isso não constam nas listas. Algumas foram completamente desintegradas por explosões. Mas isso não explica toda a diferença entre os números.
Outra explicação possível é que muitas famílias enterraram seus mortos sem levá-los ao hospital ou notificar o ministério. “Algumas famílias simplesmente não querem ou não conseguem reportar”, diz Cockerill. “Talvez os pais morram, e os filhos também, e reste uma criança de 8 anos. Como essa criança vai relatar isso?”
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“Posso morrer, por favor?”
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No hospital Nasser, em Khan Yunis, as estatísticas ganham rosto. “Você lida diariamente com traumas, ferimentos por explosões e estilhaços”, diz o cirurgião britânico Dr. Goher Rahbour, que passou um mês no hospital. “A cada dois ou três dias, havia um evento de múltiplas vítimas. O pronto-socorro ficava caótico.”
Um caso que ele nunca esquecerá é o de um garoto de 15 anos cuja família inteira foi morta. Ele próprio ficou paraplégico após ser atingido por estilhaços na medula espinhal. “Ele sabe o que o espera: nenhuma família, nenhuma fisioterapia… Então ele anda pelo hospital e pergunta: ‘Posso morrer, por favor?’”
Mesmo com a entrada limitada de alimentos via ONU e a fundação humanitária israelo-americana, a desnutrição se agrava. No mês passado, 5.452 crianças foram hospitalizadas por desnutrição severa, segundo a ONU.
“As pessoas estão esqueléticas”, diz Rahbour. “Você vê os ossos do rosto, a mandíbula saliente… Em um mês, não vi frutas, legumes, carne ou peixe.”
Há fórmula infantil para crianças de 6 meses a 5 anos. “Perguntei o que fazem quando chega uma criança faminta de 7 anos. A resposta: mandam de volta para morrer.”
A saúde geral está em colapso. “O corpo não consegue mais cicatrizar”, diz a cirurgiã britânica Victoria Rose, voluntária em Gaza até três semanas atrás. “Com a desnutrição, perde-se a capacidade de combater infecções. As crianças vivem em barracas, sem saneamento, sem esgoto, sem água potável. Tudo está destruído.”
Se a fome já não bastasse, centenas foram mortos a tiros por soldados israelenses enquanto tentavam pegar comida. Duas semanas após a chegada de Rahbour, em 1º de junho, os ferimentos mudaram: passaram a ser por balas. Em um dia, 150 a 200 feridos chegaram, além de 30 mortos.
“Alguns foram baleados enquanto estavam no chão, tentando escapar. A maioria eram jovens, mas havia uma mulher de 30 e poucos anos, grávida de 24 semanas. A bala atravessou o feto. Ela sobreviveu, mas precisou de uma histerectomia. Quando abrimos o abdômen, vimos a mão e o pé do feto.”
“Eu fiquei chocado, mas o anestesista, o ginecologista e a instrumentadora palestinos agiam como se fosse normal. Porque já viram isso muitas vezes. Você se torna insensível. Como se fosse… normal.”
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* Reportagem publicada no diário israelense Haaretz em 26/06/2025.