NÃO COMEÇOU NO 7 DE OUTUBRO: A “VILANIZAÇÃO” DO POVO PALESTINO PELO JORNAL NACIONAL

William Bonner, principal apresentador do Jornal Nacional, faz a chamada para um material a respeito do "conflito" ---------------------- Dissertação de mestrado cobriu 18 anos de materiais do telejornal da TV Globo sobre a Palestina ---------------‐- 04/07/2025 ------------------ Como o povo palestino e sua terra são retratados na imprensa ocidental? Como os veículos de comunicação brasileiros representam a dura realidade palestina, moldada à base da opressão e do genocídio continuado promovidos por “israel”? Como o órgão de imprensa mais popular do país (pois criado e mantido pelo regime ditatorial de 1964-1985, pelas parcerias com os Estados Unidos e por muita verba governamental até os dias de hoje) transmite a milhões de brasileiros o que se passa na Palestina? A jornalista Juliana Carvalho buscou compreender esse tratamento a partir da pesquisa de sua dissertação de mestrado, “A Palestina na mídia ocidental: olhares sobre a violência no Jornal Nacional”, apresentada em 2022 na Universidade Federal de Ouro Preto. Sua pesquisa aborda um período anterior à guerra genocida iniciada em 7 de outubro de 2023 pelas forças sionistas. “Geralmente, a violência na mídia é explorada apenas na dimensão da agressão física, ataques, assassinatos etc”, diz Juliana ao site da Fepal. “Outras violências, estruturais e da própria linguagem, ficam de fora ou não são nomeadas como violência. Além disso, eu também queria identificar, mesmo no caso da violência física, se as ações israelenses eram categorizadas como violentas”, continua. Leia abaixo a entrevista: P: Você analisou a cobertura do JN para entender qual era o conceito de violência utilizado e apresentado pelo telejornal ao tratar das ações na Palestina. Qual período você estudou e quais eram as ações que estavam sendo realizadas tanto pela resistência Palestina quanto pelo ocupante israelense? R: Ao todo, foram identificadas 184 VT‘s (matérias jornalísticas) sobre a Palestina, entre reportagens, notas cobertas e notas secas. Esse material está disponível na plataforma Globoplay e data de 2003 até 2021. O ano que mais obteve resultados, com coberturas praticamente diárias, foi o de 2014, quando foi iniciada a operação Margem Protetora pelo exército israelense, que invadiu Gaza por terra utilizando a justificativa de destruir os túneis clandestinos construídos pelo Hamas que ligavam Gaza ao Egito. Mesmo com o alto número de material encontrado sobre a operação Margem Protetora, optei por não limitar a pesquisa ao ano de 2014, a fim de entender como o Jornal Nacional trata a situação palestina não somente em momentos específicos de tensão, mas no dia a dia. Diante disso, foram selecionadas reportagens de diversos anos diferentes, buscando as que mais poderiam render uma análise que abarcasse uma das categorias estabelecidas pela pesquisa: violência epistêmica, violência como resposta e violência das imagens. Nas análises, a violência física, expressa em número de mortos e feridos, constitui-se como o tema principal das reportagens. Entretanto, através de textos, imagens, entrevistas e dados apresentados, o Jornal Nacional invisibiliza outras formas de violência ou comete, ele mesmo, uma violência, por exemplo, ao não conferir espaço ou legitimidade à narrativa palestina. P: E como o JN representou as ações das forças israelenses? R: As matérias seguem uma receita frequente nas coberturas do Jornal Nacional sobre a situação entre Israel e Palestina: iniciam falando sobre as mortes de palestinos, que são em números muito superiores aos de mortes israelenses, e depois começam a enumerar os motivos de Israel ter realizado o ataque responsável por essas mortes. Segue, então, uma intercalação entre os danos causados à população palestina e a justificativa israelense. O que parece persistir é que, embora os palestinos também ocupem a posição de vítimas nas reportagens, principalmente as crianças, as ações militares israelenses são necessárias para eliminar os “vilões” do Hamas. As ações israelenses, por mais brutais que sejam, são narradas como respostas aos “ataques” palestinos. Essas justificativas utilizadas pelos israelenses dificilmente são questionadas pelo Jornal Nacional, que parece conferir total legitimidade para as ações dos colonos. P: E as ações da resistência? R: As ações de resistência não são, sequer, elaboradas a partir da interlocução com a população palestina. A palavra “resistência”, e nem mesmo “reação” ou “resposta”, é utilizada para categorizar essas ações. Quem fala pela população palestina é o governo israelense, que classifica qualquer ação como terrorismo. Mesmo quando se trata de manifestações anuais, como a Marcha do Retorno ou o Dia da Terra, a cobertura sobre essas ações (que também são de resistência) é superficial e tende a focar nos confrontos violentos e não no significado desses eventos para a população palestina. Enquanto a Israel é concedido o direito de nomear os fenômenos, relatar os acontecimentos e contar a sua própria história, os palestinos têm sua história, seus costumes e cultura relegadas a um delírio. É como se as palavras de Edward Said tivessem sido escritas para qualificar a imprensa ainda hoje: “Israel é a norma, os israelenses são a presença, suas ideias e suas instituições são autenticamente nativas; os árabes são um estorno, os palestinos são uma realidade quase mítica”. P: O que mais você descobriu em sua pesquisa? R: De um modo geral, a mídia tem certa predileção em narrativas que identifiquem vilões e mocinhos. Isso está nítido nas salas de cinema, na programação televisiva, nas redes sociais e também no jornalismo. O que vemos são histórias e narrativas que confirmam certos estereótipos e estigmas atrelados a determinados grupos sociais. O imaginário criado e alimentado pelos filmes hollywoodianos, por exemplo, instaurou como normal a associação de homens árabes, ou ainda homens estrangeiros e não brancos, com o terrorismo e a barbárie. A partir do momento em que um grupo ou indivíduo é retratado de forma ameaçadora, a sua eliminação torna-se não apenas louvável, mas necessária. Há um movimento de categorização das pessoas, entre bem e mal, para que sejam consideradas dignas de vida ou de morte. Essas classificações, embora naturalizadas através dos estigmas e dos estereótipos, não estão dadas, são construídas e servem a propósitos políticos pela manutenção do poder. Além disso, grande parte dessas diferenciações e classificações entre bem e mal foram construídas a partir de preceitos racistas e discriminatórios. P: Você vê alguma diferença entre a cobertura anterior ao 7 de outubro e após ele, entre os veículos de comunicação hegemônicos? R: De um modo geral, a cobertura sobre a Palestina nos veículos de comunicação hegemônicos segue o mesmo roteiro: prioriza as fontes oficiais sionistas em detrimento da população palestina. Por isso, ainda que, diante dos últimos acontecimentos, seja mais difícil para a mídia vilanizar o povo palestino, ao conceder o poder de nomear as ações ao canais governamentais israelenses, a narrativa palestina continua sucumbida. P: Você acha que a imprensa brasileira adota uma cobertura enviesada sobre a Questão Palestina, “israel” e os conflitos no Oriente Médio? R: O imaginário sobre o mundo oriental é carregado de preconceitos, estigmas e estereótipos. Na cobertura midiática de eventos de extrema violência no Oriente Médio – que são, diga-se de passagem, os únicos eventos que chamam a atenção da imprensa quando trata-se de Oriente Médio – podemos observar a tendência à visão orientalista que subjuga os povos árabes e os colocam em uma imagem de terrorista/fundamentalista/radical/islâmico, sem ao menos compreender a diversidade religiosa e cultural que existe nesse território. O povo árabe-palestino é constantemente desumanizado para que a sua eliminação seja justificável. Nunca se pode esquecer que a raiz de toda a situação que assistimos hoje na Palestina é resultado de uma invasão territorial que foi planejada durante décadas pelo movimento sionista. Sem isso em mente, qualquer interpretação da atualidade tende a reproduzir velhos estigmas sobre as populações orientais de origem árabe. O apagamento da narrativa palestina na cobertura midiática está diretamente ligado à essa desumanização. A população palestina é enquadrada por uma linguagem que naturaliza a violência que os atinge. Assim, a forma como a imprensa a representa reforça uma perspectiva desigual, na qual a palavra e a legitimidade continuam sendo privilégio do lado israelense.
---------------------- Fonte: FEPAL – Federação Árabe Palestina do Brasil https://fepal.com.br/nao-comecou-no-7-de-outubro-a-vilanizacao-do-povo-palestino-pelo-jornal-nacional/ #PalestinaLivre #JornalNacional