Por:
Ashjan Sadique Adi
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Hoje, de repente, não mais que de repente, comecei a pensar na morte, nas mortes. Para mim, talvez isso não seja tão repentino assim, porque a morte, a morte de meu povo, a morte de palestinos, jovens, adultos, idosos, a morte de crianças e mulheres palestinas, a morte de milhares de meus irmãos, me atravessa todos os dias. Portanto, corrigindo, não é tão inesperado que a morte chegue em meus pensamentos, ela está em meus olhos e sentimentos cotidianamente.
A morte em tempos de certa paz segue rituais: velório, sepultamento, enterro, cerimônias religiosas, orações, cortejos, coroas de flores, despedidas, minutos de silêncio, mas os palestinos nesse biênio genocidário, que já vivem uma vida pouco digna, sequer recebem uma morte digna, enterros não são para todos, meu caro. É luxo em tempos de guerra.
Pais perdem seus filhos.
Filhos perdem seus pais.
Avós perdem seus netos.
Netos perdem seus avós.
Irmãos perdem seus irmãos.
Tios perdem seus sobrinhos.
Sobrinhos perdem seus tios.
Maridos perdem suas esposas, esposas, seus maridos.
Alaa Al-Najjar, médica palestina, perdeu 9 dos seus 10 filhos e o marido, num golpe único da foice sionista, enquanto trabalhava na emergência do Complexo Médico Nasser, no sul de Gaza, em Khan Yunis. Ahmad al-Ghuferi não estava em casa quando uma bomba matou toda sua família.
E como efeito dessa política de morte sionista, infame, impune, protegida e financiada pelos podres poderes, somos enterrados em valas comuns onde jazem dezenas, centenas de palestinos. Palestinos que desconhecemos os nomes, que desconhecemos os sonhos, os desejos, os projetos de vida. Perde-se uma vida e todos os sorrisos, alegrias, potencialidades que ela poderia conceder. E os corpos palestinos mortos, putrefatos são envoltos em panos azuis e jogados em valas comuns. “É a parte que te cabe deste genocídio, é a terra que não querias ver dividida”.
Outras vezes não há corpos a serem jogados; os corpos foram mutilados, estraçalhados, bombardeados. Como se enterram fragmentos? Como uma mãe enterra o braço de seu filho? Um pedaço de seu corpo? Um membro? Um pé, uma cabeça ou o que restou daquele ser humano? Como?
Nós, palestinos, morremos sob os escombros, em nossos prédios, apartamentos, casas, barracas, assentamentos, acampamentos, hospitais, mesquitas, escolas, bombardeadas. Morremos correndo em busca de farinha para nossa fome. Nós, mulheres, morremos pendurando a roupa no varal do terraço, por colonos armados que simplesmente atiram, eles sabem que podem nos matar.
Morremos pelas armas, pelas bombas, pelo fósforo branco, pelo desmatamento de nossas oliveiras, pelo roubo de nossas terras, pela invasão de nossas casas, pelo envenenamento de nossas plantações, pelas exportações de petróleo, pelas importações de equipamentos militares treinados em corpos palestinos.
Morremos nas prisões, deitados, acorrentados, com cachorros nos farejando. Morremos adoecidos, desnutridos, torturados, sufocados nas celas sem janelas. Morremos estuprados. Não, não é o Hamas quem estupra; os estupradores são os sionistas que enfiam celulares e extintores em homens palestinos. Morremos porque os poderosos nos matam, mas não só, o teu silêncio, tuas palavras, tuas orações pró-“israel”, tuas ofensas, teus preconceitos, teus estereótipos, também nos matam, e talvez você nem saiba que é um amolador de faca. Enfim, historicamente gritamos, mas o mundo ainda não nos escuta.
Até quando nos matarão, até quando morreremos nesta vala comum que se tornou o mundo, diante do Auschwitz palestino. Pior, diante de nossa Nakba contínua.
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Ashjan Sadique Adi,
Campo Grande, 19 de setembro de 2025. 17:30 hs.