Políticos blindados: O golpe da PEC contra a democracia – Por Marcelo Copelli

Votação da PEC da Blindagem. Créditos: Lula Marques/Agência Brasil --------------------- por Marcelo Copelli a Revista Forum ---------------- Ao criar obstáculos artificiais à responsabilização penal, a PEC da Blindagem dilui o princípio da igualdade perante a lei e fragiliza o Estado de Direito ---------------- A aprovação da chamada PEC da Blindagem pela Câmara dos Deputados marca um dos episódios mais graves de descompromisso com a ética e a responsabilização política no Brasil contemporâneo. A proposta altera a Constituição de forma a dificultar drasticamente a investigação e a responsabilização de parlamentares, transferindo para o próprio Legislativo a prerrogativa de autorizar processos criminais contra deputados e senadores. Essa mudança reverte conquistas importantes da Emenda Constitucional 35/2001, que retirou do Congresso a competência exclusiva de filtrar investigações, justamente para impedir que interesses políticos se sobrepusessem ao direito à Justiça. A exigência de autorização prévia, por votação secreta, da maioria absoluta da Câmara ou do Senado para que um parlamentar seja processado cria um mecanismo que transforma o Legislativo em barreira à responsabilização, favorecendo a ausência de punição e corroendo a credibilidade do sistema jurídico. Além do filtro político para processos, a PEC amplia o foro privilegiado, estendendo-o a presidentes nacionais de partidos com representação no Congresso — medida inédita e sem paralelo em democracias consolidadas. Outro ponto alarmante é a restrição à prisão de parlamentares. A proposta limita a medida a crimes inafiançáveis e ainda exige autorização legislativa, mesmo em casos em que a urgência demandaria resposta imediata da Justiça. Na prática, ergue-se uma barreira quase intransponível, tornando inviável a aplicação célere da lei contra quem ocupa cargos políticos, mesmo diante de indícios claros de criminalidade. A desfaçatez da classe política que apoiou a PEC é evidente. O argumento de que a medida protegeria o exercício do mandato não se sustenta: não há evidências de que a atividade parlamentar tenha sido prejudicada pelo sistema atual de responsabilização. O que se revela é um pacto de conveniência. Trata-se de corporativismo em sua forma mais crua, um esforço calculado para blindar parlamentares em meio a um cenário já marcado por denúncias de corrupção, irregularidades administrativas e condutas que beiram a criminalidade. O processo de aprovação evidenciou a amplitude desse alinhamento. A decisão em dois turnos, mesmo sob intensa controvérsia, mostrou que a autopreservação foi colocada acima da ética e da responsabilidade institucional. As implicações para a democracia são profundas. Ao criar obstáculos artificiais à responsabilização penal, a PEC da Blindagem dilui o princípio da igualdade perante a lei e fragiliza o Estado de Direito. A percepção de que o Parlamento se protegeu de investigações alimenta o descrédito popular e reforça a ideia de que a política brasileira se converteu em um círculo fechado de privilégios, distante da sociedade que deveria representar. Além disso, ao reduzir a capacidade de ação do Judiciário em situações urgentes, a proposta abre espaço para a infiltração de práticas ilícitas e a consolidação de redes de corrupção sistêmica, comprometendo a governabilidade e a transparência que deveriam sustentar uma democracia madura A reação da sociedade civil e da imprensa tem sido vigorosa. Ampla mobilização nas redes sociais denunciou a medida como um manto de irresponsabilidade institucional. Pesquisas e monitoramentos mostram que uma parcela expressiva da opinião pública percebe a PEC como gesto de autoproteção parlamentar — um recado de que, para muitos congressistas, preservar privilégios pessoais vale mais do que honrar responsabilidades perante a população. Esse sentimento de frustração e revolta social é um alerta para os próximos passos do Senado, que agora tem a chance de restabelecer o equilíbrio entre os Poderes e proteger os fundamentos constitucionais. A PEC da Blindagem não é apenas um retrocesso jurídico; é também uma afronta simbólica. Expõe um Legislativo disposto a sacrificar princípios republicanos em nome da autoproteção, desconsiderando o impacto devastador sobre a confiança pública nas instituições. A sociedade, os tribunais e os órgãos de controle devem permanecer vigilantes, exigindo transparência, ética e responsabilização efetiva. Caso contrário, o Congresso corre o risco de se tornar um espaço autorregulado, imune à fiscalização e alheio às demandas por justiça e equidade — um golpe silencioso contra a legitimidade democrática. Em última instância, a PEC da Blindagem representa um marco perigoso. Está em jogo se a política nacional continuará a servir ao interesse coletivo ou se será reduzida a um mecanismo de proteção corporativa. O Senado e a sociedade civil carregam a responsabilidade de impedir que o Parlamento se converta em reduto de irresponsabilidade, reafirmando que, independentemente do cargo ocupado, todos devem responder perante a Justiça. Se essa tendência não for revertida, consolidar-se-á um precedente corrosivo, capaz de afastar ainda mais a política brasileira dos princípios éticos e democráticos que deveriam norteá-la. ----------------------- *Marcelo Avelino Copelli é jornalista, editor de Política, analista e pesquisador na área de Comunicação. **Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.