“A PAZ DOS ESCOMBROS”: EMIR MOURAD DESCONFIA DE ACORDO QUE EXCLUI A PALESTINA

Dois anos depois de Israel reduzir Gaza a escombros, deixando mais de 80 mil palestinos mortos, escolas e hospitais em ruínas e uma geração de crianças mutiladas e traumatizadas, líderes internacionais reuniram-se no Egito para assinar o chamado “plano de paz para Gaza”, elaborado sob a liderança de Donald Trump. O suposto “acordo de paz” foi anunciado com pompa e aplausos de Washington. Mas faltava o essencial: nem Israel, nem o Hamas, nem qualquer representação legítima do povo palestino estava na mesa. Para o secretário-geral da Confederação Palestina Latino-Americana e do Caribe (Coplac), Emir Mourad, o acordo é, na verdade, um plano de cessar-fogo sem legitimidade e sem horizonte político real. -------------- “NÃO É UM PLANO DE PAZ — É UMA TRÉGUA LIMITADA” --------------- Para Mourad, o conteúdo e até o nome do acordo já revelam sua limitação. “O plano se chama ‘plano de paz para Gaza’, não para a Palestina. Isso já mostra que ele não tem como objetivo resolver a questão central: o direito ao Estado Palestino. Falar em paz sem falar de Palestina é uma contradição”, disse ele em entrevista ao Portal Vermelho. O dirigente destaca que os três pontos positivos — o cessar-fogo, a troca de prisioneiros e a entrada de ajuda humanitária — são conquistas do povo palestino e não concessões do plano norte-americano. “Esses pontos foram vetados quatro vezes pelos Estados Unidos no Conselho de Segurança da ONU. Agora, os mesmos que bloquearam a paz querem aparecer como mediadores. É um absurdo moral. ” Mourad lembra que 80% da infraestrutura de Gaza foi destruída — escolas, hospitais, centros de ajuda e áreas residenciais. Mesmo assim, ele afirma que o povo palestino segue resiliente. “As crianças palestinas tiveram a infância roubada, mas ainda têm esperança. Esse cessar-fogo é necessário para que parem de morrer civis, mas não é um processo de paz. É apenas o fim temporário de um massacre. ” O líder palestino vê no acordo mais um capítulo da longa história de promessas não cumpridas. “O povo palestino já está escaldado. O processo de Oslo durou mais de 30 anos e terminou em fracasso. Israel nunca cumpriu seus compromissos. Por isso, esse plano precisa ser visto com muita cautela. ” ------------- “UM PLANO SEM PALESTINOS É ILEGÍTIMO” ------------ Um dos aspectos mais criticados por Emir Mourad é o fato de o acordo ter sido assinado sem a presença de israelenses ou palestinos. “Como é possível falar em paz para Gaza sem Gaza? Nenhum palestino assinou. Nenhum israelense assinou. É um acordo imposto de fora, que serve apenas para legitimar uma tutela internacional sobre o território palestino. ” O plano prevê a administração de Gaza por um comitê internacional, supostamente liderado por Tony Blair e supervisionado por Donald Trump, algo que Mourad classifica como ofensivo. “Trump, que armou Israel e vetou o cessar-fogo, agora quer se colocar como ‘presidente do Conselho da Paz’. É quase uma ofensa. Os Estados Unidos não podem ser juízes de um conflito que eles alimentaram. ” Para ele, o caminho legítimo seria retomar o protagonismo da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), reconhecida pela ONU como o representante legítimo do povo palestino. “Mais de 160 países reconhecem o Estado da Palestina e a OLP tem status de observador na ONU. É com ela que se deve negociar, não com comitês externos ou administradores nomeados em Washington. ” -------------- “DESARMAMENTO SEM GARANTIAS É RENDIÇÃO” ------------- Questionado sobre a exigência de desarmamento do Hamas, Mourad faz uma analogia com outros processos históricos de paz. “Veja o caso das FARC na Colômbia. Elas só depuseram as armas quando houve garantias reais — anistia, participação política e reconhecimento de direitos. O mesmo vale para a Irlanda. Ninguém entrega as armas sem saber se terá um Estado ou se será traído depois. ” Ele recorda o precedente dos Acordos de Oslo, firmados por Yasser Arafat nos anos 1990 e descumpridos por Israel. “Lá atrás pediram para Arafat se desarmar. E o que aconteceu? Oslo foi traído. Arafat foi assassinado. O povo palestino não esquece isso. ” --------------- A HORA DA PRESSÃO INTERNACIONAL --------------- Para Emir Mourad, se os Estados Unidos querem realmente paz, devem usar seu peso diplomático para obrigar Israel a reconhecer o Estado Palestino e retirar-se dos territórios ocupados. “Os EUA pressionaram Netanyahu a aceitar o cessar-fogo. Agora precisam pressionar para que Israel aceite a solução definitiva: dois Estados, com Jerusalém como capital da Palestina. Sem isso, tudo é maquiagem. ” Ele defende que a ONU e organismos regionais assumam papel mais decisivo, substituindo o controle norte-americano. Para Mourad, o caminho real para a paz passa por uma conferência internacional, com participação efetiva de todas as potências — inclusive China e Rússia, excluídas da mesa de Trump. “O caminho é internacionalizar o processo, mas sob a égide da ONU, com a participação plena da OLP. O que não pode é transformar Gaza em um protetorado internacional sem soberania. ” --------------- GAZA EM RUÍNAS E O “SONHO” DO BALNEÁRIO TURÍSTICO -------------- Para Emir Mourad, o plano revela mais sobre o oportunismo geopolítico de seus articuladores do que sobre a vontade real de encerrar a guerra. Após o próprio Trump e membros do governo israelense mostrarem imagens de inteligência artificial redesenhando Gaza como um balneário turístico para israelenses, sem palestinos, fica a dúvida de como a cidade será reconstruída. “Como se pode reconstruir Gaza sem o povo palestino? Sem legitimidade política, isso não é reconstrução — é especulação. Querem transformar o território devastado em um negócio de investimentos”, afirma Mourad. O acordo, patrocinado por Donald Trump, Tony Blair e líderes árabes, prevê um fundo internacional de reconstrução, mas não define quem o controlará nem qual será o papel das forças palestinas locais. As imagens de Gaza após dois anos de ofensiva israelense são de destruição quase total. Hospitais, escolas e bairros inteiros foram varridos do mapa. “Israel e Trump falavam em transformar Gaza num grande balneário turístico. Isso é uma ofensa. Como se fosse possível apagar a história de um genocídio e substituí-la por um resort”, denuncia o dirigente da Coplac. Mourad questiona quem financiará e quem se beneficiará desse processo. “O que significa reconstruir Gaza? Qual o montante necessário? Quem administrará os recursos? E, principalmente, quem representará o povo palestino nesse processo? Não é o Tony Blair, não é o Trump. O único representante legítimo é a OLP, reconhecida desde 1974 por todas as cúpulas árabes. ” O principal problema, segundo Mourad, é que a chamada reconstrução está sendo conduzida como uma operação de mercado, sem base política ou jurídica sólida. “Um plano de paz sério precisa ser concreto, palpável e consistente com a história e com o direito internacional. Esse plano não é nada disso. É vago, contraditório e ignora o essencial: a presença das tropas israelenses em Gaza e na Cisjordânia. ” O secretário-geral lembra que o acordo sequer menciona a retirada das forças de ocupação, nem prevê garantias de soberania territorial. “Não se pode falar em paz enquanto a ocupação continua. A Cisjordânia foi esquecida, como se o problema se resumisse a ruínas materiais, quando o que está em jogo é o direito de existir como povo. ” ----------------- O TEATRO DE TRUMP E O CUSTO POLÍTICO DO GENOCÍDIO ---------------- Para Mourad, a mediação de Donald Trump é mais um espetáculo do que uma diplomacia real. “Trump quer ganhar o Prêmio Nobel da Paz. Quer posar de grande encerrador de guerras, mas todos sabem que é uma figura do show business, egocêntrica, que transforma tragédias humanas em palanque político. ” O dirigente observa que, embora o apoio a Israel ainda pese na política norte-americana, o genocídio em Gaza começou a cobrar seu preço político. “Israel é um grande custo para os Estados Unidos, inclusive moral. A opinião pública mundial pressionou fortemente. Milhares de pessoas saíram às ruas, houve protestos históricos em Londres, Paris, Nova Iorque, Berlim. Até nos Estados Unidos, as universidades se levantaram contra o massacre — tanto que Trump reagiu cortando verbas dessas instituições. ” ---------------- O DESEQUILÍBRIO NO ORIENTE MÉDIO E A CRISE DO SIONISMO ---------------- Os dois anos de guerra, lembra Mourad, não afetaram apenas Gaza. Israel realizou bombardeios no Líbano, Síria, Irã, Iêmen e Catar, ampliando tensões regionais e reconfigurando alianças. “Foram dois anos duríssimos para todo o Oriente Médio. Israel atacou meio mundo e demonstrou que a paz na região é impossível enquanto a questão palestina não for resolvida. Yasser Arafat dizia: não haverá paz no Oriente Médio sem o Estado da Palestina — e continua sendo verdade. ” Mourad ressalta que a opinião pública mundial mudou, isolando Israel. “Hoje o mundo sabe que o apartheid israelense precisa ser derrubado. Esse regime colonialista não se sustenta mais. Inclusive muitos judeus se levantaram contra ele. O sionismo sequestrou o judaísmo — e isso está provocando uma ruptura dentro da própria comunidade judaica internacional. ” --------------- A FALSA SIMETRIA ENTRE OCUPANTE E OCUPADO ---------------- O dirigente critica duramente a narrativa que tenta colocar palestinos e israelenses no mesmo patamar moral, tratando ambos como lados equivalentes. “Falam em reféns israelenses e prisioneiros palestinos, mas os verdadeiros reféns são os palestinos, cercados por ar, mar e terra desde 2007. Há 11 mil prisioneiros palestinos nas cadeias de Israel. É uma ocupação, não um conflito simétrico. ” Para Mourad, a resistência palestina é um direito humano e histórico: “Quando Hitler invadiu a França, chamaram a resistência francesa de terrorista. Quando os argelinos lutaram contra o colonialismo, também eram terroristas. Agora é o mesmo discurso. O oprimido sempre é criminalizado. Mas resistir à opressão é um direito, não um crime. ” --------------- VITÓRIAS APARENTES, DERROTAS PROFUNDAS ------------- Ambos os lados tentam narrar alguma forma de vitória. Israel celebra o enfraquecimento do Hamas; os palestinos, a sobrevivência e a solidariedade global. Mourad, porém, afirma que as vitórias de Israel são “temporárias e vazias”, enquanto o fortalecimento político e simbólico da causa palestina é “duradouro”. “Netanyahu prometeu destruir o Hamas, mas até hoje pedem o desarmamento do grupo. Se foi destruído, por que pedir o desarmamento? Essa contradição mostra o fracasso militar e político de Israel. A resistência segue viva — e mais reconhecida que nunca. ” O secretário-geral lembra que o mundo assistiu, em tempo real, ao massacre em Gaza, o que consolidou um novo consenso internacional. “As pessoas viram o genocídio ao vivo. Isso mudou consciências. Nunca houve tanta solidariedade à Palestina. Nas ruas, nas universidades, nas redes, há uma convicção: não há democracia verdadeira que se sustente sobre o sangue de outro povo. ” --------------- ENTRE IMPUNIDADE E ESPETÁCULO ------------ Mourad também denuncia a ausência de qualquer menção à responsabilização de Israel pelos crimes de guerra. “Depois da Segunda Guerra, houve Nuremberg. Agora, nada. Nenhum tribunal, nenhuma investigação independente. Como se pode falar em paz sem julgar os responsáveis pelo genocídio? ” Para ele, o “acordo” patrocinado por Donald Trump é, na verdade, uma encenação política: “Trump quer posar de pacificador e ganhar o Nobel da Paz. Mas suas mãos estão manchadas de sangue palestino. Ele disse, diante do Parlamento israelense, que enviou as melhores armas para Israel. Então, como pode ser mediador de uma paz que ele mesmo sabotou? ” -------------------
A QUESTÃO PALESTINA COMO CENTRO DA PAZ MUNDIAL ----------------- Ao final, Mourad reafirma o caráter universal da luta palestina. “A causa palestina é o centro da questão da paz mundial. Enquanto houver uma colônia no século XXI — a colonização sionista da Palestina —, o mundo viverá em desequilíbrio. É a última colônia da história moderna. ” O dirigente faz um apelo: “A palavra é bonita, mas a ação é que conta. O momento é agora. Ou o mundo trata a Palestina como sujeito político, ou continuará tratando a ocupação como negócio. ” Gaza continua sob bloqueio, a Cisjordânia sob ocupação, e o povo palestino — sem voz — é convidado apenas a assistir à “reconstrução” de sua própria tragédia. O chamado “acordo de paz” não encerra o conflito — apenas muda seu formato. Gaza segue sob cerco, a Cisjordânia sob ocupação, e o povo palestino segue sem representação. Como diz Emir Mourad: “A paz sem os palestinos é só um espetáculo. E um espetáculo montado sobre ruínas. ” ---------------------- Fonte: https://encurtador.com.br/wQRAl ------------ #PalestinaLivre #COPLAC